Por Viriato Soromenho-Marques*
O erro dessa famosa “armadilha de Tucídides” reside numa excessiva simplificação deste mundo plural e caótico. O verdadeiro poderio norte-americano não coincide com o período posterior ao desmembramento da URSS (1991), mas ocorreu sim na década posterior à II Guerra Mundial.
Nessa altura, os EUA detinham cerca de metade do PIB mundial, o exclusivo da arma atómica (até 1949), uma capacidade de construção das infraestruturas institucionais (ONU, FMI, Banco Mundial) que iriam garantir a sua natureza híbrida de “República Imperial”, pedindo de empréstimo o título de um livro de 1973, da autoria de Raymond Aron: o exercício da dominação norte-americana não consistia (apenas) no uso da violência bélica, mas na capacidade de, através de iniciativas como o Plano Marshall, produzir bens públicos acessíveis aos povos que aderiam à sua esfera de influência.
Salazar, completamente insuspeito de simpatia pelos EUA, percebeu isso com rigor: “Os Estados Unidos sentem, como não sentiram em 1919, a responsabilidade da sua força e da sua vitória, e dá-se com eles o estranho caso de ascenderem ao primeiro plano da política mundial pelo seu próprio valor, sem dúvida, mas também impelidos, solicitados pela generalidade das nações. É quase uma hegemonia plebiscitada, tal a consciência da insegurança e da possibilidade de mergulhar numa catástrofe sem a ajuda da grande nação americana” (Discurso de 09.11.1946).
A guerra na Ucrânia mostra que a Rússia não saiu da equação do futuro. Os BRICS são a prova deste tempo multipolar, percorrido por profundas e numerosas clivagens. Hoje, quem atrai aliados através de bens públicos, expressos na estratégia da Nova Rota da Seda, é a China.
Pensar que se pode ditar leis ao mundo apenas com armas, bases militares e sanções, mais com raiva do que razão, significa trocar a prudência do real por uma perigosa e quimérica grandeza.
* Professor universitário
Fonte: https://www.dn.pt/3587982507/a-hegemonia-quimerica/ Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário