Por FLÁVIO R. KOTHE*
Não há propriamente um fim da metafísica, já porque para a maioria, mesmo dos acadêmicos, ela nem começo teve, nunca se tornou problema
Tem sido moda palrar sobre “fim da metafísica”, como se ela estivesse em vias de acabar, sem ver o acabamento (no duplo sentido de liquidar e de aperfeiçoar) que ela faz em nossas vidas: o mais importante seria ver a finalidade dela, qual é sua dimensão prática. Não há propriamente um fim da metafísica, já porque para a maioria, mesmo dos acadêmicos, ela nem começo teve, nunca se tornou problema.
Nas escolas, não se trata dela, pois ela pertence a essas tantas áreas que parecem privadas por serem problemáticas, o que não impede de fazerem doutrinação. Já não é fácil manter o princípio da liberdade de crença: mais difícil ainda é manter a liberdade de descrença, pois esta sugere que toda crença é uma abdicação da liberdade: desiste-se de continuar pensando, de questionar aquilo para o que não se tem resposta e então se aceita uma “explicação” que não se sustenta.
Questões de crença ou opção sexual são problema particular e privativo, da esfera íntima de cada um. Ninguém deveria se meter nisso, nem mesmo o Estado. A opção que um jovem faça em termos de profissão ou de parceria de vida, nisso nem os pais deveriam se meter: apenas aconselhar se forem consultados. Os filhos terão de conviver com erros e acertos de suas decisões.
Tal opção particular afeta, porém, a vida coletiva. Como ela envolve conceitos gerais, pode ser refletida de modo teórico. A reflexão não se intromete na vida de ninguém, mas se mete no que envolve a vida de todos, mesmo que seja para dizer que a vida não deve ser mais o seu conceito central. A universidade se tornou uma fábrica de técnicos especializados, que querem seu diploma o quanto antes, para poderem “ganhar a vida”. As questões metafísicas são, porém, profundamente práticas, determinam o que se faz e o que se deixa de fazer, o que vale e o que não vale, razões para sorrir e para chorar.
Na filosofia alemã tem-se discutido há mais de meio século que estamos num mundo abandonado pelos deuses (Hölderlin lamentava em 1800 que não se acreditasse mais nos antigos deuses gregos, em vez de se alegrar por não se estar dominado por tais crendices) e que (desde Nietzsche, tão marcado pelo conflito entre luteranismo e formação clássica) estamos à espera do último deus. Ora, que deus seria esse que não queria aparecer?
Se aderirmos ao discurso dos filmes que os americanos espalham pelo seu império, logo teremos pencas de deuses, não um só: Batman, Batwoman, Mulher Maravilha, Besouro Azul, Besouro Verde etc. Todos querem salvar o mundo, castigar os bandidos, mostrar que tudo se decide na porrada e que os ianques se sacrificam pela justiça.
Quando olhamos uma noite estrelada, somos alçados ao infinitamente grande e vemos quão insignificantes somos, para em seguida, talvez, termos o consolo de vivenciar o sublime, de poder abrigar algo dessa grandeza em nós. Pascal expressou isso: “Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie” (o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora). Esse matemático puxou o cobertor da crença católica, numa variante então herética, e se tornou monge, morrendo cedo demais na cama quente de um convento. Não esperou que a técnica desenvolvesse aparelhos para escutar os sons que percorrem os espaços siderais. Não há silêncio: há apenas surdez nossa. Ou seja, é como se não houvesse o que não existe para nós. Tudo é como achamos que seja.
Charles Baudelaire fez no soneto “Le gouffre” um comentário irônico: “Je ne vois qu’infini par toutes les fenêtres” (Nada vejo senão infinito por todas as janelas). Ou seja, não é preciso sair à noite, pelo campo e olhar para o alto, pois há infinitude em tudo (o que não é o mesmo que ver nos entes finitos a presença do Criador, pois este “é um ente”). Dizendo-se tomado de vertigem, anota, no último verso, a grande contradição: “Ah! ne jamais sortir des Nombres et des Etres!” (Ah! não sair jamais dos números e dos seres!) Os espaços podem ser infinitos, usamos nomes e números finitos para designá-los, reduzindo tudo a entes finitos, para que eles caibam (?) em nossa percepção. Ao “caberem”, são falseados, finitiza-se o infinito, mesmo no signo ∞. Olhar pela janela significa teorizar, perceber nos entes a presença do ser, daquilo que os une a outros entes por semelhança ou contraste.
Immanuel Kant olhava para o mesmo céu estrelado e suspirava: “Das Erhabene!” Temos a errônea tradição de traduzir o termo “sublime”. O engano não é por acaso e nem trai tanto o luterano Kant, que não queria comprometer em sua obra a religião da família. O termo sublime provém de “sub-limes”, o que fica abaixo do limiar, enquanto das Erhabene provém de heben, levantar, e erheben, que é elevar, erguer, alçar, ou seja, colocar num patamar além daquilo que vemos, os milhões de estrelas que podemos imaginar, muito mais do que os talvez dois mil pontos de luzes claras que vemos espargidos no alto (e que só são bancos pela fraqueza de nossos olhos, pois as estrelas deveriam ser azuis ou vermelhas conforme estejam se afastando ou se aproximando de nós.
Vincent van Gogh pintou “A noite estrelada”, como que fazendo dos espaços siderais uma coisa finita, uma tela, mas colocou tal vibração energética nos astros que a infinitude vibrava em todos eles. O ente finito vibra a energia infinita. Esse pulsar nas coisas e das coisas dão uma noção de transcendência.
Pascal achava que a vivência de uma noite estrelada nos dá, primeiro, a noção de que somos muito pequenos, ínfimos, para depois, num segundo momento, nos sentirmos alçados à grandeza da infinitude, sentirmos que há algo grandioso em nós que nos permite ter ao menos uma noção do infinito. Não é assim, porém, para quem acredita em Deus: embora seja uma representação da infinitude no espaço, no tempo, no poder e no saber, ele é um ente determinado exatamente por essas “qualidades”, por essas categorias do entendimento humano. Assim ele se torna finito.
Para o cristão, o importante é que corpos celestes são testemunhos da grandeza divina, que tudo teria criado e tudo governa. Então é preciso rezar para um ente tão poderoso, erguer templos, participar de cultos, pagar dízimos, com a esperança de que ele atenda às preces. Se algo parece atendido, diz-se “graças a Deus”; se não for, Deus deve saber melhor o que deve ser feito. Não se xinga um deus.
O deus que se supõe representar a infinitude no espaço, no tempo, no poder e no saber se torna a essência de tudo, pois tudo teria derivado do que ele havia se imaginado, quando estava sozinho e – cansado da solidão – resolvera inventar tudo, até mesmo o homem. E, tendo se tornado homem e habitado entre nós, permite que possamos imaginá-lo como uma extensão e ampliação do humano. É um deus humanoide, antropomórfico, no qual desejos, vontades, ânsias, amores e assim por diante podem ser projetados.
Nenhum ente pode conter e ser o ser de tudo. Um ente só é ente porque não é outro ente. O cristão acha, contudo, que determinado ente, Deus, possa conter a essência de tudo. Por isso ele precisa que as ideias sejam abstratas, pois se fossem concretas não caberiam todas Nele e ele seria a duplicação de tudo. Sendo a duplicação de tudo, Ele já não é mais necessário, pois é substituído pela Natureza. Cuidar do meio ambiente se torna uma espécie de culto religioso, uma missa celebrada a cada dia.
O termo infinito e o signo ∞ são modos de finitizar o infinito, ou seja, nega-se no significante o próprio significado. Eles são como que uma desistência de continuar contando, um modo de sugerir o que fica além do entendimento. Os dois telescópios lançados nos espaços siderais estão mandando imagens de galáxias nunca vistas antes. Essas distâncias são contadas em anos-luz, um nome para algo que um sujeito não pode contar. Nenhum de nós nem dos eventuais descendentes há de chegar até elas, mas elas chegam até nós dizendo que nunca chegaremos em carne e osso lá.
Estamos sozinhos como espécie, solitários nos espaços siderais. Ir até a Lua ou Marte não faz maior diferença nas imensidões infindáveis. Se houvesse um botão mágico – como em Guerra nas Estrelas – que permite à nave saltar para uma velocidade maior que a luz, ninguém sobreviveria ao aumento súbito de pressão, não seria capaz de perceber que distâncias que parecem infinitas se desdobram em finitudes. Kant observou que a mente humana só consegue captar e pensar finitudes. Até o infinito é uma finitude.
Aristóteles preparou, sem querer, uma grande armadilha para o pensamento ao tentar explicar a noção de espaço. O distanciamento entre corpos, que é marcado pelo movimento dos corpos, gera a noção de distância, mas é a distância que permite os distanciamentos. Para entender isso, ele usa a imagem de colocar líquido numa jarra. Tem-se então o vinho ou a água dentro da jarra, a jarra dentro de uma sala, a sala dentro de uma casa, que está num bairro, que está numa cidade, que está numa região (e, podemos acrescentar, está num planeta, que está num sistema estelar etc.).
Cada corpo é envolvido por outro corpo maior. Assim, quando se chegar ao último corpo (poderíamos tomar aqui o “cosmos” como corpo), será preciso um próximo corpo, ainda maior, que desse limites a esse corpo. Assim, o último se tornaria penúltimo, o que obrigaria a se ter mais um corpo ainda maior que esse suposto último, que precisaria de mais um, ainda maior, e isso continuaria infinitamente.
O cristianismo “resolveu” isso com o milagre da invenção de um deus que, sendo um “ente”, seria capaz de ver de fora o universo inteiro, fazendo do universo um “universo”, algo que dá volta sobre si e se fecha em si. Daí o homem ainda se proclama centro do universo e a Igreja trata de torturar e matar em público quem duvidasse disso.
É mais fácil aplaudir a execução de hereges do que pensar o que a heresia nem chegou propriamente a pensar. A mente humana não tem condições de pensar isso: não há “cosmos” (um todo organizado e harmônico), não há universo (uni-verso), não há sequer “infinito” se ele é feito de finitudes. Suárez inventou que o universo teria o formato de uma parábola, que é uma figura geométrica feita a partir de dois centros (enquanto o círculo parte de um centro só), mas supondo que os centros poderiam ficar em qualquer lugar e as beiras no infinito. Toda figura geométrica é finita. Sendo herege em relação ao centro do universo no homem, inventou uma figura feita a partir de dois lugares, para ter uma figura geométrica, que é, por natureza, uma finitização.
A metafísica era dividida em metafísica geral, a ontologia, e três metafísicas especiais: teologia, psicologia, cosmologia. O tema filosófico do “último dos deuses” é herdeiro dessa tradição. Ele não rompe com a metafísica, não dá um passo para fora dela. Então Nietzsche e Heidegger continuam dentro dela. O pensamento ocidental está preso a essas próteses em que ele próprio se colocou.
É absurdo colocar no mesmo patamar homem e cosmos. Isso contém uma hipertrofia do homem e uma atrofia do “cosmos” que quer igualar o que é incomparável. O “deus” que aparece aí na “teologia” é um mediador entre o finito e o infinito, algo que para o cristianismo se coroa na tese de que Cristo seria o deus que se fez homem e “habitou entre nós”.
Quando a filosofia mais avançada fala no “últimos dos deuses”, ela continua presa ao parâmetro antigo de tornar equivalente o que é tão desigual que não deveria ser alçado ao mesmo parâmetro. Só que não sabemos como sair disso, não temos linguagem nem lógica para isso. A expressão “último dos deuses” já sabota o que ela gostaria de perfilar. O que aparece aos olhos dos telescópios espaciais é algo tão imenso que nem pode ser nominado como “gigantesco”, pois um gigante ainda seria um homem grande.
O sublime matemático de Kant era uma proporção – digamos de uma árvore de 15 metros diante de uma montanha de 5.000 metros – que permitia descobrir a grande diferença entre o pequeno e o grande. Mesmo que a árvore tivesse 50 metros e pareça enorme aos homens, ela quase desapareceria diante da montanha. A diferença de tamanho, porém, entre o humano e os espaços que as constelações, descobertas pelos novos telescópios extraterrestres, ocupam nos espaços siderais é tamanha que não caberia no conceito de sublime matemático.
Digamos que essas constelações siderais e seu além – algo que nós nem conseguimos propriamente pensar – fossem representar “o último deus”, isso sequer seria um “Atheos absconditus”, pois o termo não-deus pressupõe um deus, que por sua vez pressupõe um homem que o imagina. Supor que ele esteja “escondido” também é algo humano, como se essas constelações ainda mais distantes da Terra estivessem pudicas “se escondendo” diante dos homens. Elas não têm essa preocupação de se esconder. Já estavam lá, muito antes de aparecer vida na Terra, e vão continuar existindo depois que não houver mais vida no planetinha azul.
Não há proporção para que se possa supor que elas configurem um “deus”, um “último deus”. Por mais longe que estejam essas “novas constelações”, deve haver algo ainda mais além, algo de que não temos percepção nem noção. Não somos capazes de pensar o que não tenha para nós alguma espécie de finitude. Não conseguimos entender “espaços siderais” que não acabem nunca mais. Por instinto achamos que somos o centro de tudo e que, portanto, tudo gira em torno de nós, tudo vigiado por um deus nosso.
Esse além de um “Atheos absconditus” não seria um ente, não poderia ter nenhuma figura nem configuração. Seria como que o “aceno” da existência de “algo”, de tudo o que não seria apenas um determinado ente embora formado por “entes”. Os nomes dados fazem de tudo uma redução à finitude do homem. Não se poderia chamar de “ser” aquilo que não se tem nenhuma noção do que é, já porque nem se percebe sua existência.
O “último deus” cai na mesma falácia a que chegou Aristóteles ao
pensar o espaço mediante uma ação humana, derramar um líquido dentro de
uma jarra. Não temos nem teremos termos e imagens para designar esse
“Seer” ou “Seer”, esse “Seyn” que ecoa o “Sein” e
não se pode achar que ao falar Dasein para ser humano já se resolveu o
problema. O que se aponta aí é certa capacidade que alguns humanos têm
de perceber a transcendência sem fazer nela uma projeção de figuras
antropomórficas divinizadas.
Tem-se aí o índice de algo que é marcado pela ausência: seu ser é não ser. Se nenhum ente pode conter o ser de todos os entes, ser de algum modo tudo, o seu substitutivo, o último deus, não poderá ter as características do que ele pretende estar superando. Não pode ser onipotente nem onipresente porque nosso poder sempre é limitado e estamos apenas em um lugar. Supor que o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus” nos permite inverter a tese e postular que os deuses foram todos feitos à imagem e semelhança do homem.
Pode-se rezar para eles como quem pede ajuda a um amigo, mas isso serve para diminuir a angústia de quem reza, não significa que haja uma ação do outro lado respondendo às súplicas. Para o que seria esse “além do último dos deuses” não adiantaria rezar, pois ele não seria antropomórfico. Termos como negação ou ausência também não o definiriam. Não temos ainda uma linguagem capaz de pensar a transcendência.
*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc]
Fonte: https://aterraeredonda.com.br/o-ultimo-deus/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-08-07 - Imagem da Internet
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