Tido como sectário e alvo de perseguição, o islam oferece uma concepção não ocidental de bem-estar; pesquisa da USP destaca necessidade de maior preparo de profissionais da saúde mental para atender comunidade muçulmana
Texto: Tabita Said
Arte: Beatriz Haddad*
Apesar de haver uma boa base teórica para intervenções e práticas terapêuticas fundamentadas na religiosidade e espiritualidade, entre elas a psicologia cristã, judaica, budista e até de povos originários, a academia ostenta poucos estudos voltados à orientação de saúde mental utilizando a literatura islâmica. A escassez de material e evidências científicas levou a psicóloga Sálua Omais a investigar os caminhos para a felicidade e o bem-estar à luz do Alcorão e da Sunna – livros considerados sagrados para muçulmanos do mundo inteiro.
A pesquisadora identificou e analisou ensinamentos orientados para a felicidade e o bem-estar no islam, em paralelo com a psicologia positiva, centrada na felicidade e satisfação do indivíduo. Sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, descortina o funcionamento psíquico descrito na concepção islâmica, que é totalmente atrelado à dimensão espiritual e transcendental.
“Essa separação entre o secular e o religioso é uma construção ocidental, que apresenta a religião como a imagem do retrocesso. Isso levou muitos muçulmanos a desacreditarem da psicologia, que não abrangia e até confrontava certos princípios religiosos. Não é verdade dizer que onde a religião se insere, existe retrocesso.
A respeito do senso comum que atribui à religião uma conduta violenta e totalitarista, a pesquisadora faz a ressalva: “Comportamentos extremos de adeptos que extrapolam os limites de um comportamento religioso saudável não são práticas exclusivas dos muçulmanos, por isso não se pode fazer generalizações”.
Para a psicóloga, a religião não pode ser um tabu na psicologia e precisa ser desmistificada nos ambientes acadêmicos, que ainda insistem em excluir a dimensão espiritual de suas grades curriculares. Mas, não apenas nas universidades: com medo de ferir o código de ética profissional, Sálua alerta para o receio de psicólogos em aliar a espiritualidade à prática clínica. Ela lembra que, nos Estados Unidos, a área foi oficializada ainda em 1971, integrando a divisão 36 da American Association of Psychology (APA), sob o nome de Psicologia da Religião e da Espiritualidade.
Islam
- Originado na região da Península Arábica, no século 7 da era comum, o islam é uma religião baseada em uma revelação divina representada pelo Alcorão, cujos ensinamentos são complementados por uma extensa coletânea de tradições religiosas. A palavra “islã” (ou islam) tem ligação com a palavra salam, que significa paz. Já “muçulmano” vem do termo árabe muslim, que significa aquele que se entrega ou aquele que é pacificador.
- O muçulmano é todo indivíduo que pratica a religião islâmica de forma voluntária, ou seja, que se entrega aos ensinamentos islâmicos, independentemente de raça, cor ou país de origem, já que nem todo muçulmano é de origem árabe.
- Enquanto a primeira palavra associada ao gênesis judaico-cristão é “criou”, o primeiro versículo do Alcorão é “lê”.
- Apontado como o “selo dos profetas” – ou aquele que veio após todos os profetas (cristãos e judeus) – Muhammad é considerado o último mensageiro de Deus pelos muçulmanos, e não um ser divino. Aos 40 anos de idade, pastor de ovelhas, mercador e casado com uma mulher 15 anos mais velha, o profeta teria recebido uma revelação por meio do anjo Gabriel, iniciando sua missão profética.
- Apesar de popularmente conhecido por “Maomé” no Brasil, o termo não é aceito pela comunidade islâmica, tanto por se tratar de nome próprio ao qual não cabe tradução, quanto por seu significado pejorativo. Em português, a palavra deriva de mafoma, que significa “escultura grosseira”.
- Além de mentor religioso, Muhammad se tornou um dos primeiros líderes políticos obrigados a migrar por causa das perseguições sofridas na época. Vivendo em Meca, uma cidade até então majoritariamente politeísta, Muhammad pregava a crença em um único Deus, o que o levou a se abrigar na cidade de Medina.
- Estima-se que existam entre 1,8 e 2 bilhões de muçulmanos no mundo, o que equivale aproximadamente a 1/4 da população mundial, sendo a segunda maior religião do mundo. No Brasil, pouco mais de 35 mil pessoas se declararam muçulmanas, de acordo com o último censo do IBGE.
- A palavra Allah – comumente utilizada nas orações e saudações muçulmanas, como por exemplo em InshaAllah, que significa “se Deus quiser” – nada mais é do que a tradução em árabe da palavra Deus. Allah é compreendido como criador do Universo no sentido mais genérico do termo, e não como um deus específico dos muçulmanos.
Eudaimonia e bem-estar
A tese desenvolvida por Sálua reuniu oito artigos científicos escritos por ela ao longo de sua trajetória acadêmica. No texto, a psicóloga resgata feitos de pensadores árabes que, segundo ela, realizaram inúmeras descobertas e progressos na ciência que plantou as bases para o Renascimento europeu. Esse legado, porém, é confuso e nebuloso para não estudiosos.
Para ela, além de contribuir com uma epistemologia decolonial, estudos sobre a psicologia islâmica ampliam o acesso à informação sobre o islam, a questão da islamofobia e xenofobia no contexto brasileiro. “O estigma que envolve o islam abala a autoconfiança dos adeptos e dificulta a integração social deste grupo, que é considerado uma minoria étnica, religiosa e cultural”, aponta.
Para investigar e descrever o funcionamento da mente a partir das crenças e do estilo de vida dos muçulmanos, Sálua precisou mergulhar nas diferenças sutis que separam a ideia de felicidade e de bem-estar desenvolvidas pela psicologia ocidental.
Mais amplo e possível de se mensurar, o conceito de bem-estar pode ser subjetivo, depender de uma série de variáveis e de um julgamento pessoal, incluindo ou não uma ideia de felicidade. Já a felicidade é caracterizada por um estado emocional predominantemente positivo e prazeroso. Neste caso, a pesquisadora destaca conceitos filosóficos clássicos de Aristóteles, como a hedonia e a eudaimonia – o primeiro, ligado ao prazer sensível e gratificação imediata, e o segundo representando a virtude e a ética.
“O islam não é contrário aos prazeres. Ele apenas alerta que os jogos, os bens que a pessoa acumula, representam uma felicidade ilusória e temporária. O Alcorão traz o termo ‘vida agradável’, que se assemelha à felicidade eudaimônica de Aristóteles, e o caminho para essa vida agradável está baseado na fé e nas boas ações.”
A pesquisa de Sálua é marcada por ir além do Ocidente, descortinando alguns dos expoentes da psicologia islâmica moderna. É o caso do sudanês Muhammad Uthman Nagati, pioneiro da área e considerado um dos psicólogos mais influentes do mundo árabe por suas traduções e obras originais produzidas.
De acordo com a pesquisa, o campo da psicologia islâmica também teve impulso, no início da década de 1970, com os escritos do psicólogo e professor Malik Badri. Em sua obra O dilema dos psicólogos muçulmanos, o autor enfatiza o impacto da fé no tratamento psicoterapêutico e critica o enfoque materialista da ciência psicológica da época.
“A crítica de Badri não se voltava somente às teorias clássicas da psicologia, mas também aos testes e instrumentos psicométricos, que não incluíam as diferenças culturais e religiosas de determinadas populações. Isso comprometia a confiabilidade e replicabilidade dos resultados obtidos em determinados grupos”, aponta a pesquisadora.
Sem uma devida agenda de inclusão de determinados grupos – o que a pesquisadora chama de “descarte de saberes” – a ciência psicológica não chegará a um aperfeiçoamento.
Tabu do véu
O uso do véu não é considerado pelas muçulmanas uma privação da sua liberdade, mas sim a própria liberdade do livre-arbítrio e do direito de controlar seus próprios corpos, assumir suas identidades e praticar sua religiosidade.
“A sensação de uma muçulmana ao deixar de usar sua vestimenta religiosa é a de falta de liberdade, não o contrário”, diz a pesquisadora em sua tese, referindo-se ao hijab, o véu islâmico.
Ao Jornal da USP, a pesquisadora lembra que outras religiões expressam a humildade e a entrega também nos hábitos de vestir. Mesmo assim, uma freira ou uma monja é associada à devoção; já uma muçulmana que opta por utilizar o hijab, é tida como oprimida.
“Parece até contraditório, já que o Ocidente prega tanto a liberdade, atribuindo a opressão ao mundo árabe-islâmico. No entanto, a liberdade é aquela que permite ao sujeito realizar suas próprias escolhas livremente, ao invés de ser obrigado a seguir padrões culturais aos quais ele não pertence e com os quais ele não concorda. Por isso, as diferenças entre o conceito de liberdade ocidental e islâmico também são um dos pontos abordados nesse trabalho”, afirma.
Pesquisa propõe agenda inclusiva e perspectiva positiva sobre a construção de epistemologias não ocidentais no campo da psicologia. Entre eles, as ideias islâmicas de liberdade e felicidade – Foto: Freepik
Sheiks sunitas
A pesquisa desenvolvida por Sálua na USP contou ainda com uma fase qualitativa, examinando a compreensão de felicidade e bem-estar de acordo com os ensinamentos presentes nos textos considerados sagrados para os muçulmanos. Participaram cinco sheiks sunitas, que residem no Brasil há pelo menos 15 anos, e um tradutor do Alcorão em língua portuguesa.
Em um primeiro momento, os participantes preencheram formulários com palavras que relacionavam forças de caráter com versículos do Alcorão. Posteriormente, a pesquisadora realizou entrevistas sobre temas relacionados ao bem-estar e à felicidade, do ponto de vista islâmico.
As análises demonstraram que religiosidade (e espiritualidade) operam na mesma chave da felicidade e bem-estar. Para os entrevistados, os versículos do Alcorão também demonstram um incentivo à prática de virtudes, tanto individual quanto socialmente. Esse estímulo a uma boa conduta reforça os valores da fé em um sistema em que crenças, práticas e ensinamentos religiosos são inseparáveis. A crença na vida após a morte e em um cenário de “juízo final” também influenciaram os seguidores da religião sobre sua forma de agir no mundo, além de oferecer a eles certo conforto diante das adversidades da vida cotidiana.
“Os pilares da fé constituem um repertório cognitivo que influencia o comportamento do muçulmano. Isto sem, necessariamente, esperar por uma recompensa. Porque todas as vezes que você fizer algo esperando a troca, você vai entrar em um processo de frustração e tristeza, até não querer mais repetir aquilo que deve fazer”, explica.
A tese destaca ainda que a falta de conteúdos positivos na mídia e as constantes distorções apresentadas em livros didáticos e em outras produções artísticas e literárias, fora do mundo árabe, contribuíram para gerar ocultamentos sobre o legado intelectual islâmico e fomentar a intolerância e a islamofobia. Mas a psicologia pode ser um campo fértil para mitigar o distanciamento da população muçulmana. “E a aceitação é fundamental para uma vida mais agradável”, aponta.
Mais informações: @saluapsicologiapositiva
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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