Por Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP
Somos amiúde instados a conduzir a nossa vida, quer profissional como pessoal, com a atenção focalizada no futuro, evitando concentrá-la no já acontecido. Sobejam adágios com essa recomendação, alguns dos quais, valendo-se de uma analogia automobilística, enfatizam a importância de dirigir olhando pelo para-brisa e não mirando o espelho retrovisor.
Reconhecendo o valor inspirador de numerosos provérbios, é prudente tomar essas “pílulas de sabedoria” cum grano salis. Olhar pelo para-brisa é condição necessária, mas não suficiente para dirigir um veículo no mundo real, pois em vias com curvas vemos somente o que está relativamente próximo. E mesmo em trechos retos conseguimos olhar um pouco mais longe apenas se as condições forem favoráveis. Na escuridão da noite recorremos aos faróis, mas eles são inúteis em nevoeiros, como evidenciam engavetamentos trágicos.
Por sua vez, a responsabilidade dos condutores de mirar o espelho retrovisor está implícita na Resolução do Conselho Nacional de Trânsito que estabelece como equipamentos veiculares obrigatórios espelhos retrovisores interno e externo, este em ambos os lados dos veículos. Uma das decorrências inusitadas da prática de direção que presta atenção ao espelho retrovisor é a escrita espelhada na frente de ambulâncias, que facilita a identificação desse veículo pelo motorista à sua frente, assim urgindo-o a dar-lhe passagem. Ao contrário do que sugerem adágios chamativos, mas equivocados, mirar o espelho retrovisor é essencial, contribui para salvar vidas.
Como todos os motoristas sabem, é preciso olhar tanto para frente como para trás ao conduzir um veículo. Mas como os aforismos que usam a mencionada analogia automobilística repercutem numa possível mentoria para a nossa vida fora do assento do condutor?
Vale considerar a reflexão oferecida pelo professor Marshall McLuhan (1911-1980), o conhecido intelectual público da comunicação, da cultura e da tecnologia, cuja capacidade de despertar pensamentos originais nos que o acompanhavam fê-lo receber o apelido de “piromaníaco da imaginação”. Ele oferece uma explicação para a sua constatação de que a maioria das pessoas avança cronologicamente, mas vive de fato no passado. Elas se agarram ao espelho retrovisor porque a vista que oferece pode ser mais reconfortante do que confrontar o que é visível pelo para-brisa: “As pessoas preferem viver a partir do que veem no espelho retrovisor pois é mais seguro… Elas já estiveram lá, sentem-se confortáveis”.
Em vista disso, conforme esse autor, tentamos lidar com situações completamente novas a partir de vivências anteriores. Essa abordagem repercute na demora em aquilatar o potencial de avanços tecnológicos radicais, pois os interpretamos com base num repertório construído no passado. No seu linguajar provocador, McLuhan sintetiza o efeito do espelho retrovisor na frase de impacto “andamos de ré em direção ao futuro”. Ela dá origem ao intrigante título da obra Forward Through the Rearview Mirror (“Avançar Através do Espelho Retrovisor”, em tradução livre), uma combinação de livro, revista e roteiro com reflexões de e sobre McLuhan.
A asserção do pensador canadense sobre a demora para encarar inovações de forma desvinculada do passado é corroborada pela história. Quando surgiram, no final do século 19, os automóveis eram chamados de “carruagens sem cavalos”. Tinham uma forma similar à dos coches tradicionais, ainda que fossem propulsionados mecanicamente e não por equinos. A mudança de nome ocorre somente décadas depois, quando se percebeu que a elevada resistência do ar acarretada pela configuração física original desses veículos era prejudicial à melhoria do seu desempenho, pois desperdiçava parte dos benefícios que os permanentemente aperfeiçoados motores possibilitavam.
Nos idos de 1935 um artigo técnico registra que a combinação dos resultados do teste de modelos de veículos automotores em túnel de vento com dados confiáveis de resistência ao rolamento indicava a possibilidade de reduzir os requisitos de potência em 19% a 55%. O responsável pelo estudo, que partiu de pesquisas sobre a efetividade do projeto de aviões, manifestava a expectativa de que essas constatações levassem à rápida obsolescência dos veículos inspirados em coches em favor de carros aerodinâmicos. Por isso, intitulou o artigo Farewell to the Horseless Carriage (“Adeus à Carruagem sem Cavalos”, em tradução livre).
Há sentido em buscar analogias automobilísticas contemporâneas como inspiração para a nossa jornada humana? Duas novidades merecem atenção. Uma é fruto de empreendedorismo inovador clássico e já está incorporada em nosso cotidiano, enquanto a outra, promovida por empresas incumbentes em busca de diversificação, ainda enfrenta contratempos.
A primeira é a categoria de aplicativos de navegação orientados pela comunidade, cujo pioneiro é o Waze. Sua origem, em meados da primeira década deste século, é a recusa de uma empresa produtora de dispositivos para navegação baseados no sistema de posicionamento global (GPS), então comercializados como acessórios, de aceitar uma sugestão de aprimoramento feita por Ehud Shabtai, que era um jovem recém-egresso dos cursos de Ciências da Computação e de Filosofia da Universidade de Tel Aviv.
“Parece muito natural que as pessoas compartilhem a maneira como viajam. Liguei para a empresa que criou o GPS e sugeri incorporar minhas ideias em seu dispositivo. A resposta foi que eles não podiam dar as informações dos mapas para que eu pudesse atualizá-los”. A recusa tinha razão de ser, pois a empresa de dispositivos de navegação dependia de mapas proprietários produzidos por um duopólio. As duas grandes corporações especializadas desenhavam as vias usando um processo trabalhoso e caro, o que fazia com que a atualização das informações fosse infrequente. Ademais do desconforto causado por essas defasagens, os usuários tinham o dissabor de arcar com o custo elevado incorrido pela operação periódica de atualização, pois precisavam pagar a cada vez que “baixavam” uma nova versão dos mapas no dispositivo que haviam comprado. Em contraposição, o duopólio dos mapas e o fornecedor dos dispositivos estavam felizes com a situação, que lhes gerava receitas recorrentes.
Daí surgiu a Ehud a ideia de “automapeamento”, mediante compartilhamento de informações pela comunidade de motoristas que estavam percorrendo uma região. Sua visão apontava para um cenário futuro em que seriam disponibilizados mapas atualizados em tempo real, acessíveis sem custo aos usuários. Isso seria factível graças ao advento e disseminação de um aparelho promissor, o celular. Este, à época, era ainda chamado de “telefone celular”, denominação que confirma a leitura de McLuhan sobre o uso de repertórios pretéritos. Vale observar que a primeira geração do iPhone foi anunciada somente em 2007, um ano após a formalização da empresa israelense criada por Ehud e dois sócios, confirmando ser correta a aposta tecnológica feita pelos empreendedores.
A implementação da visão precursora percorreu a jornada habitual de uma empresa nascente intensiva em conhecimento – entrada de sócios que complementam as competências do fundador, validação de produto minimamente viável, promoção de uma marca atraente e consecução do aporte inicial de investimentos. Uma curiosidade: o nome desejado para o aplicativo era Ways, que significa “caminhos” e “maneiras” em inglês. Todavia, a pessoa que havia registrado essa marca com anterioridade pediu um valor exagerado para licenciar o seu uso. Esse óbice levou à designação criativa Waze, que tem uma sonoridade praticamente idêntica à do nome desejado, mas inviável. Ademais, combina dois constructos do aplicativo, “ways” e “maze” (labirinto, em inglês), sugerindo ser um assistente para motoristas escaparem da confusão do trânsito.
Dois investidores que acompanharam essa trajetória notável desde o começo indicam motivações que os levaram a aportar recursos naquela proposta transformadora, e que são também razões essenciais para a expressiva difusão do aplicativo no seu país de origem e mais além. Uma delas é o tratamento da inovação como um processo sociotécnico, e não apenas tecnológico.
A empresa conseguiu criar uma forte conexão emocional dos motoristas com o aplicativo e, por tabela, com a comunidade de usuários, eis que um de seus fundamentos é o enfrentamento de um inimigo comum – os engarrafamentos. Outra razão é a reciprocidade intrínseca ao modelo. Pelo simples uso do aplicativo as pessoas também contribuem para o esforço conjunto da comunidade de usuários interessada em “driblar” os congestionamentos. Esse feito é alcançado sem que cada usuário-contribuinte tenha que realizar qualquer ação adicional.
A segunda novidade que merece atenção é a emergência dos chamados veículos autônomos, também conhecidos como “veículos sem motorista” (qualquer semelhança com a denominação “carruagens sem cavalos” não é mera coincidência). Para funcionarem adequadamente, especialmente no supercomplexo tráfego urbano, eles demandam uma quantidade elevada de dados complementares, por vezes até redundantes, que precisam ser adquiridos por diferentes canais. Assim, valem-se de câmeras inseridas em todos os lados do veículo – frente, traseira, esquerda e direita – para adquirir uma visão abrangente do entorno. Sensores de radar complementam a visão das câmeras em momentos de baixa visibilidade, como na movimentação noturna ou sob nevoeiro. Adicionalmente, o desempenho do veículo autônomo pode se beneficiar de dados adquiridos por um sensor que mede distâncias por lasers pulsantes, os quais ensejam uma percepção do ambiente em três dimensões. Dão assim forma e profundidade aos demais veículos e pedestres ao redor, bem como à geografia da via, mesmo em condições de baixa luminosidade.
A expectativa é que o adequado processamento do robusto conjunto de dados adquiridos pelos veículos autônomos permitirá reduzir drasticamente o número e a gravidade dos acidentes de trânsito em comparação com o que ocorre com veículos conduzidos por humanos. Esse número é impressionante e escandaloso: segundo a Organização Mundial da Saúde, a cada ano morrem 1,2 milhão de pessoas por acidentes de trânsito, enquanto um número estimado entre 20 e 50 milhões sofre ferimentos não fatais, muitos dos quais causadores de incapacidades físicas permanentes.
Os ensinamentos extraíveis dessas inovações automobilísticas podem, sim, ajudar a direcionar a nossa vida em direção ao futuro. Dos veículos autônomos aprendemos a importância de adquirir uma “visão 360 graus” do contexto relevante, assim superando tanto a dicotomia para-brisa ou espelho retrovisor dos adágios como o reducionismo para-brisa e espelho retrovisor da prática de direção habitual.
Dos aplicativos de navegação aprendemos o valor potencial da inteligência coletiva e, no caso da trajetória do Waze, também o mérito da persistência na transformação de ideias relevantes em realidades que beneficiam a sociedade, ou seja, na inovação de interesse social.
O que essas analogias ajudam pouco é na resposta à questão mais importante da vida: para onde ir?
Fonte: https://jornal.usp.br/articulistas/guilherme-ary-plonski/em-direcao-ao-futuro-analogias-automobilisticas-que-inspiram-nossa-jornada-humana/ - Imagem da Internet
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