quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Itinerários misóginos entre batinas e togas.

Artigo de Anita Prati

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22 Agosto 2024

"A articulada argumentação de Elena Cassandra Tarabotti parte de uma premissa fundamental: os ataques misóginos contra as mulheres são facilitados pelo fato de que as mulheres não podem responder à 'inventada maldade' de seus acusadores 'por falta de estudo'. A ignorância à qual o sexo feminino é condenado, a falta de educação das mulheres, é a causa principal de sua privação do livre arbítrio", escreve Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 20-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O fato de as mulheres não serem da mesma espécie que os homens e, consequentemente, não terem alma e, portanto, não poderem se salvar, era uma opinião generalizada entre vários autores de tratados dos séculos XVI e XVII, expoentes máximos da chamada Querelle des femmes.

O iniciador da Querelle foi o jurista francês André Tiraqueau que, em seu tratado De legibus connubialibus et iure maritali de 1554, argumentava que as mulheres, no âmbito de processo penal, deveriam receber punições menores do que os homens devido à sua menor racionalidade - um discurso perfeitamente alinhado com a afirmação de Tomás “femina est mas occasionatus”.

Da França, o debate sobre a natureza das relações entre os sexos se espalhou por toda a Europa, atingindo as esferas da política, da sociedade, da economia e da religião. Em meio a sátiras, antissátiras, tiradas misóginas, paródias, doutas lucubrações e veementes apologias, a Querelle ofereceu uma contribuição não insignificante para o desenvolvimento dos tratados filosóficos do século seiscentistas, cujos protagonistas creditados eram, é claro, todos homens.

Mas é exatamente dentro desse horizonte, rigorosamente dominado por discursos de homens sobre mulheres, que podemos encontrar Arcangela Tarabotti.

Uma monja veneziana

Nascida em Veneza, no bairro operário de Castello, em fevereiro de 1604, Elena Cassandra Tarabotti era a primogênita de uma grande família de classe média. Provavelmente devido a um defeito físico - uma claudicação herdada do pai - que teria limitado suas chances no mercado matrimonial, com pouco mais de dez anos foi obrigada a entrar primeiro como educanda e depois como professa no mosteiro de Sant'Anna em Castello, onde permaneceu, sem nunca sair, até sua morte em 1652.

Em 1623, após a profissão solene, assumiu o nome de Irmã Arcangela e, como Irmã Arcangela, encerrada entre os muros daquele convento no qual havia entrado à força e não por vontade própria, dedicou todas as suas energias de pensamento a refletir e escrever sobre a condição das mulheres, sua privação do livre arbítrio e seu direito à educação.

Suas reflexões confluíram em livros de títulos eloquentes, como La tirannia paterna (o la semplicità ingannata) [A tirania paterna, ou a simplicidade enganada), em que Tarabotti dá voz à trágica experiência autobiográfica do monacato forçado, e L'Inferno monacale [Inferno monacal], onde trata da vida dentro dos conventos. Impressos em número limitado e depois esquecidos ou deixados em estado de manuscrito, os livros de Arcangela Tarabotti só há algumas décadas começaram a atrair o interesse da pesquisa histórica, literária e filosófica.

“Que as mulheres sejam da espécie dos homens”

O último trabalho da pensadora data de 1651, o ano anterior à sua morte. Trata-se de um pequeno livro intitulado Che le Donne siano della spetie degli Huomini, no qual a monja veneziana dá uma resposta pontual ao tratado Che le Donne non siano della spetie degli Huomini. Doscorso piacevole, tradotto da Horatio Plata Romano, publicado em 1647. Nesse tratado, Horatio Plata, provavelmente o pseudônimo do escritor veneziano Giovan Francesco Loredano, fundador da Accademia degli Incogniti, apresentava-se como tradutor para o italiano da Disputatio nova contra mulieres, qua probatur eas homines non esse, publicada anonimamente em Frankfurt em 1595. Arcangela Tarabotti contesta a tese central de Plata e do autor anônimo da Disputatio nova contra mulieres, segundo a qual, como as mulheres não são da mesma espécie dos homens, não têm alma, não têm acesso à salvação e “Deus não se humanizou e morreu por elas”.

A articulada argumentação de Tarabotti parte de uma premissa fundamental: os ataques misóginos contra as mulheres são facilitados pelo fato de que as mulheres não podem responder à “inventada maldade” de seus acusadores “por falta de estudo”. A ignorância à qual o sexo feminino é condenado, a falta de educação das mulheres, é a causa principal de sua privação do livre arbítrio. Tarabotti responde às acusações avançando justamente no terreno que, por proibição social, deveria ser estranho a ela, o do conhecimento das Escrituras. Suas argumentações, estruturadas a partir de uma leitura precisa dos textos bíblicos, com mordaz vivacidade intelectual, desmontam as teses misóginas daqueles que, servindo-se de um método falacioso de interpretação das Escrituras, sustentam que as mulheres não podem ser consideradas da mesma espécie que os homens:

Busquem e pesquisem melhor as Escrituras, não fiquem na casca, penetrem na medula, pois a cada passo encontrarão o Homem e a Mulher de uniforme condição.

O longo caminho da emancipação

A Querelle des femmes, tematizando a igualdade entre os sexos como uma questão de princípio, coloca-se como imprescindível prelúdio no percurso que, com enorme esforço, entre os séculos XIX e XX, levaria a explicitar o princípio em artigos de lei: do direito de estudar ao sufrágio universal e ao acesso a cargos políticos e executivos.

Um longo e acidentado caminho da teoria à prática, como lembra Paola Di Nicola Travaglini em seu livro La giudice. Una donna in magistratura. Entrelaçando autobiografia e pesquisa historiográfica, a juíza Di Nicola Travaglini ilumina, com provas documentais, as difíceis etapas que levaram à promulgação da Lei 66, de 9 de fevereiro de 1963, que sancionou a admissão de mulheres em cargos públicos e às profissões liberais. A Lei 66/1963 representa o ponto culminante de um debate acirrado que começou nas salas da Assembleia Constituinte, quando era preciso dar forma ao que viria a ser o artigo 51 de Carta Constitucional italiana. A esse respeito, Di Nicola Travaglini cita interessantes trechos de discursos proferidos durante os trabalhos da Assembleia Constituinte. Assim se expressou o magistrado democrata-cristão Antonio Romano:

"Com todo o respeito devido às capacidades intelectuais das mulheres, tenho a impressão de que elas não são indicadas para a difícil arte de julgar. Isso requer grande equilíbrio e, às vezes, lhes falta equilíbrio por razões fisiológicas".

Fundamental, em um contexto tão fortemente contaminado por preconceitos atávicos, foi a presença na Assembleia das vinte e uma mães constituintes, que desempenharam um papel ativo no apoio, em deferência ao princípio da igualdade sancionado no Artigo 3, à formulação do Artigo 51 da Constituição nos termos que foram posteriormente aprovados:

Todos os cidadãos de ambos os sexos podem ter acesso a cargos públicos e posições eletivas em condições de igualdade, de acordo com os requisitos estabelecidos por lei. Para esse fim, a República promove com as devidas providências a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.

Do artigo 51 da Constituição à Lei 66/1963

Muitos outros obstáculos precisariam que ser removidos para que a Lei 66/1963 fosse promulgada quinze anos após a entrada em vigor da Constituição. A juíza Di Nicola relembra algumas passagens do panfleto La donna giudice ovverosia la 'grazia' contro la 'giustizia', impresso em 1957 pelo presidente honorário da Corte de Cassação, Eutimio Ranelletti. Com o tom tranquilo de quem não admite réplicas, Ranelletti afirmava em seu livro que a mulher é fátua, leve, superficial, emotiva, passional, impulsiva, teimosa para dizer o mínimo, sempre aproximativa, quase sempre negada à lógica e, portanto, inadequada para avaliar objetivamente, serenamente e sabiamente os crimes e os infratores em seu devido escopo.

Finalmente, em 9 de fevereiro de 1963, a Lei nº 66 foi aprovada e promulgada, composta por apenas dois artigos:

Art. 1º. A mulher pode ser admitida em todos os cargos, profissões e empregos públicos, inclusive a Magistratura, nas diversas funções, carreiras e categorias, sem limitação de funções e progressão da carreira, observados os requisitos estabelecidos em lei. O alistamento da mulher nas forças armadas e nos corpos especiais é regulado por leis especiais.

Artigo 2º. A Lei nº 1176/1919 e o regulamento subsequente aprovado pelo Decreto Real nº 39/1920 e qualquer outra disposição incompatível com a presente lei são revogados.

Após a promulgação da lei, o primeiro concurso para a magistratura, também aberto às mulheres, foi anunciado em 3 de maio de 1963. No concurso se classificaram oito mulheres, que iniciaram suas carreiras como magistradas em abril de 1965. Um passo histórico. Como se, escreve a juíza Paola Di Nicola Travaglini, de um dia para o outro, as mulheres pudessem usar uma batina sacerdotal em vez de uma toga e celebrar a missa interpretando, à nossa maneira e com nossa própria cultura e experiência de exclusão, as Sagradas Escrituras, a palavra de Deus, as parábolas dos Evangelhos, os gestos de Cristo, os sofrimentos de Sua mãe.

Sessenta anos se passaram desde aquele 1963. Nesses sessenta anos, uma revolução silenciosa, mas extraordinariamente eficaz, garantiu que, dos cerca de 9.000 magistrados presentes na Itália hoje, cerca de 55% sejam mulheres.

Sessenta anos atrás, eram os anos do Concílio Vaticano II. E, entretanto, os nossos homens de Igreja ainda estão envolvidos em discutir o diaconato feminino.

Indicações bibliográficas

Arcangela Tarabotti, Che le Donne siano della spetie degli Huomini, Artetetra, Capua 2014.

Paola Di Nicola Travaglini, La giudice. Una donna in magistratura, HarperCollins, Milão 2023.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/642682-itinerarios-misoginos-entre-batinas-e-togas-artigo-de-anita-prati

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