Anselmo Borges*
Francisco tem consciência de que é necessário 'ultrapassar a obsessão dos ecrãs, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar de livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto'.” FOTO: Pedro Correia / Global ImagensEle próprio foi professor de Literatura, sabendo, pois, do que que fala, e dá um exemplo: “Eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão.” Na verdade - e cita Karl Rahner -, a literatura inspira-se na quotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como “a acção, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida”.
É urgente ir ao encontro do Homem, não do Homem abstracto, mas de um ser humano concreto, do “mistério daquele ser concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida”. E para isso está também o recurso assíduo à literatura, que, entre tantas outras vantagens, “melhora a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.” E cita M. Proust: os romances desencadeiam “em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber”. E C. S. Lewis: “Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de pessoas sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo”, e continua: “Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca.”
Para que serve a literatura? “Ela ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais.” Mais: o seu olhar “forma para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.”
E Francisco conclui luminosamente: “Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: ‘Quem realmente aprende a ver aproxima-se do invisível’.” E eu lembrei-me de Paul Klee: “A arte não reproduz o visível, ela torna visível.”
*Padre e Professor de Filosofia
Fonte: https://www.dn.pt/711768665/o-homem-questao-para-si-mesmo-3-o-contributo-da-literatura/
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