Por Marcos Candido
Encontrar origem de livros pirateados é desafio para polícia e judiciário Foto: gopixa/adobe.stock
Grupos na rede divulgam ilegalmente milhares de obras digitalizadas sem autorização; veja a opinião de uma pessoa que compartilha esses livros, de uma escritora que teve a obra pirateada e de um advogado especializado em direitos autorais
Em 2014, a escritora Luisa Geisler abriu o e-mail e se deparou com uma boa notícia. Durante dois anos, Luísa viajou pela Irlanda para pesquisar temas para um novo livro. Assim que concluiu o romance, ela enviou os originais à Companhia das Letras que, meses depois, a respondeu com a proposta: um adiantamento e a publicação da obra pelo selo Alfaguara. “Tudo isso durou entre quatro a cinco anos”, diz ao Estadão.
Em setembro de 2023, porém, a escritora teve uma nova surpresa. O livro De Espaços Abandonados (Alfaguara, 2018), havia sido incluído em uma ação judicial após ser digitalizado ilegalmente por grupos de pirataria em canais no aplicativo Telegram.
Segundo a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), o caso da escritora é um entre milhares. A associação calcula que a pirataria de livros causou um prejuízo de R$ 1,2 bilhões para o setor editorial brasileiro só em 2024. As obras são baixadas em grupos de Telegram, Facebook, X (antigo Twitter) e em sites exclusivos de livros para download ilegal.
As penas contra quem pirateia vão de prisão de até quatro anos a pagamento de multa por infringir direitos autorais. O combate à prática, porém, tem funcionado como um jogo de gato e rato. Assim que sites são derrubados, outros aparecem com as mesmas cópias ou acervos ainda maiores. Para tentar desmontar os esquemas, a estratégia das editoras tem sido de entrar na Justiça a operações policiais.
Em 2022, por exemplo, o Ministério da Justiça criou uma força-tarefa com policiais civis do Maranhão, Paraná, Espírito Santo e Minas Gerais para cumprir seis mandados de busca e apreensão, exclusão de perfis e suspensão de sites de pirataria de livros. Os agentes bateram em portas, dividiram-se para verificar endereços pelo País e rastrearam endereços digitais de suspeitos.
A operação, batizada de Last Page, foi anunciada com ares cinematográficos. “O nome da operação faz alusão ao ato de encerrar a leitura do livro. Isto é, ao chegar à última página, o livro é fechado, assim como ocorrerá com os sites alvos da operação”, anunciou o ministério. A história, porém, nunca chegou ao fim.
Dois anos depois, a ABDR calcula que 47 mil livros de literatura, 32 mil livros técnicos, 3 mil livros religiosos e 932 publicações infantis e didáticas foram pirateados só entre janeiro e junho deste ano. Em alguns casos, os grupos operam como navios fantasmas, onde os responsáveis pela pirataria sequer são conhecidos.
A ação que envolve o livro de Luisa, por exemplo, foi movida contra o Telegram e uma “pessoa a ser identificada.” A Justiça determinou a suspensão do grupo no aplicativo de mensagens sob multa de R$ 100 por dia contra a plataforma. Apenas em 2023, no ano em que o livro de Luisa foi pirateado, a ABDR estima que 93 mil livros de literatura foram baixados de forma ilegal no Brasil por meio de 160 mil páginas diferentes na internet.
“Eu entendo a intenção de alguém querer consumir o livro na mesma hora sem pagar nada, se levarmos em consideração que um livro hoje pode custar mais de R$ 50″, diz Luisa. O grupo onde foi hospedado De Espaços Abandonados tinha 330 mil membros quando foi derrubado pela Justiça, em abril deste ano.
Para a escritora, porém, os efeitos da pirataria variam: a editora pode deduzir que o livro vendeu pouco, devido às cópias piratas não contabilizadas e desconsiderar um novo contrato com um autor. Assim como ter menos caixa para bancar de escritores a tradutores e capistas.
“É como jogar lixo pela janela do carro: pode-se achar que é uma coisa pequena, mas que gera uma pilha no caminho”, acrescenta a autora.
Nas ações às quais o Estadão teve acesso, a pirataria é praticada por pessoas comuns. Durante a Operação Last Page no Espírito Santo, a polícia apreendeu os equipamentos de um administrador de empresas no município de Marataízes, com pouco mais de 40 mil moradores.
Já em um processo julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo, um morador do município de Tupanciretã, no Rio Grande do Sul, onde vivem apenas 20 mil pessoas, e mais duas pessoas foram condenadas a indenizar editoras por distribuir livros sem autorização a mais de 100 mil pessoas no Facebook. Nas redes, o gaúcho se diz soldado do Exército em Santa Maria, também no Rio Grande do Sul. O grupo foi suspenso e o valor da indenização ainda será fixado pela Justiça.
Pedra no sapato
Em julho, a Justiça também determinou a suspensão de um site chamado LeLivros, que mantém um acervo com milhares de livros em formato .pdf e para leitores digitais, como o Kindle. A página é uma das principais pedras no sapato das editoras. Além de livros distribuídos pelos administradores, os usuários também compartilham arquivos baixados de outras fontes na internet.
A investigação concluiu que os dados de uma antiga instalação de telefone fixo de uma dona de casa, com baixa escolaridade e sem acesso a computadores, foram usados pelos administradores para despistar uma possível investigação.
A Justiça ordenou a quebra do sigilo pelo provedor que hospedava a página, além de intimar o Google a retirar o endereço do buscador. Cinco pessoas, incluindo a dona de casa, foram identificadas e intimadas a depor.
Convocada a prestar depoimento, a dona de casa pediu uma indenização de R$ 30 mil por danos morais, que não foi concedida pelo TJ-SP. Já os autores foram condenados a arcar com os custos advocatícios e a pagar uma indenização, ainda a ser definida. O site, apesar disso, continua no ar.
Nos anos 90, a pirataria de livros era restrita a cópias feitas em universidades - o famoso ‘xerox’. No final dos anos 90, isso traria um prejuízo de US$ 300 milhões para editoras no mundo todo, segundo cálculo da ABDR, criada em 1992 para o combater esse crime. Hoje, o desafio é ainda maior.
Alguns sites de livros digitais estão hospedados em países como Polônia, o que dificulta ainda mais o rastreamento dos administradores, e um mesmo acervo pode ser encontrado em mais de uma plataforma online. A fonte original, por vezes, se perde durante o processo e cria um emaranhado difícil de ser interrompido, seja pela polícia ou pela Justiça.
Livros mais caros
Uma consequência pode ser o encarecimento dos livros nas prateleiras: com menos dinheiro entrando, as editoras podem acabar repassando o valor aos consumidores. Outras justificativas das editoras para esses reajustes também são a inflação e os custos com produção e distribuição.
“O setor do livro estima que os prejuízos causados pela pirataria equivalem a, pelo menos, 50% do total dos valores de vendas de livros no ano de 2023″, explica Dalton Morato, presidente da ADBR. A associação faz levantamentos próprios e também investiga denúncias vindas das editoras.
“A pirataria de livros prejudica os seus autores, a cadeia de produção e comércio de livros, e o poder público que não consegue cobrar tributos das pessoas físicas e jurídicas que comercializam obras piratas”, acrescenta Dalton.
15 mil livros na nuvem
Larissa*, nome fictício, organizou mais de 15 mil livros em um endereço do Google Drive compartilhado no X (antigo Twitter). “Apesar do temor, eu resolvi arriscar pois os benefícios seriam maiores que o perigo de disponibilizar esse tipo de conteúdo”, diz, por e-mail ao Estadão. “Existem muitos acervos de cinema gigantes no Twitter, por que não um para livros?”, questiona.
Segundo ela, os gêneros mais visados em seu acervo vão de literatura brasileira e clássica, com temas que vão de narrativas LGBTs a Clarice Lispector, passando por achados como Letters to Milena, de Franz Kafka, e autores árabes.
Larissa diz que faz tudo sozinha e é motivada pelo preço alto, o que, na opinião dela, torna os livros inacessíveis a muitos leitores. “Além da situação deprimente em relação à economia, temos um sistema que não incentiva a leitura”, diz.
Até agora, ela afirma ter escapado das notificações judiciais. “Se um dia ocorrer [uma ação judicial], tenho advogados. Além de tudo, se for preciso apagar tudo, eu apagaria sem problemas pois os acervos onde baixo os livros estão todos na internet, meu único trabalho é baixar, colocar no drive, organizar e publicar”, acrescenta.
Em vez de polícia ou juízes, o setor editorial estuda sensibilizar a população. “É um trabalho de formiguinha fazer com que as pessoas entendam que não basta entrar no Telegram e baixar um livro”, acrescentou Sevani Matos, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL) em um debate sobre o tema em Atibaia, interior de São Paulo, no início de junho.
Outra iniciativa de editoras como Contexto, Saraiva e Autêntica é o site Minha Biblioteca, com milhares de livros que podem ser baixados em formato digital por R$ 46 mensais, com catálogos disponíveis nas seguintes áreas: Medicina, Saúde, Exatas, Jurídica, Sociais Aplicadas, Pedagógica e Artes &Letras.
“Piratear um livro não vale o risco – pois o valor da assinatura desta biblioteca de livros digitais é muito baixo”, acrescenta Dalton, da ADBR.
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/como-a-justica-e-a-policia-tentam-parar-redes-de-pirataria-de-livros-que-causam-prejuizo-bilionario/
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