Frei Betto completa 80 anos e segue militando por uma sociedade mais igualitária. "Vou morrer assim: lutando por essa utopia", diz em entrevista à DW.
Prestes a completar 80 anos, Frei Betto atendeu a reportagem da DW na última terça-feira, do convento dominicano em que vive — "não mais por virtude, mas por vício", como diz — no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo.
Na conversa, o religioso recordou momentos importantes de sua trajetória, da ditadura ao período em que coordenou o programa Fome Zero, na primeira passagem de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Planalto. E a reafirmou sua posição socialista.
"Eu sou uma pessoa de esquerda, eu sou uma pessoa que acha que no capitalismo a humanidade não tem futuro. Ainda defendo o socialismo, não seguindo os modelos conhecidos, mas tem que haver uma sociedade que assim como o direito ao voto é universal, o direito à riqueza também tem de ser universal", argumenta.
Nascido em Belo Horizonte em 25 de agosto de 1944 — e batizado como Carlos Alberto Libânio Christo —, o religioso tornou-se Frei Betto em 1966, quando se tornou frade dominicano. Antes, havia sido dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica.
Militante histórico de movimentos pastorais e sociais e seguidor da corrente Teologia da Libertação, braço progressista da Igreja Católica, se tornou visado pela ditadura militar e, por isso, foi preso duas vezes — em 1964 e, depois de 1969 a 1973.
Aproximou-se de Lula quando este era líder sindical e Betto atuou na Pastoral Operária no ABC paulista, no início dos anos 1980. Amigo e conselheiro, se tornou o nome natural para coordenar o Programa Fome Zero, programa de erradicação da fome no Brasil. Esteve no governo de 2003 a 2004.
As celebrações pelos 80 anos começaram em junho, quando foi homenageado na Universidade de Havana — universidade que o reconhece como doutor honoris causa. Na recepção oferecida pelo embaixador brasileiro em Cuba, Christian Vargas, até o atual presidente do país, Miguel Díaz-Canel, foi cumprimentá-lo. Neste sábado (24/08), Frei Betto pretende ir para Belo Horizonte, para passar a data do octogésimo aniversário com seus irmãos e sobrinhos.
Confira os principais pontos da conversa:
DW Brasil: Vamos começar com um momento emblemático de sua trajetória: entre 2003 e 2004, o senhor foi o coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero, que acabaria erradicando a fome no Brasil. Foi o maior desafio da sua vida?
Frei Betto: Não, não foi. O maior desafio da minha vida foi enfrentar quatro anos de prisão, sendo que dois anos entre presos comuns, durante a ditadura. Aquilo lá, para mim, foi tranquilo. O Fome Zero tinha caráter emancipatório e quando ele se transformou em Bolsa Família, o que foi bom mas tem caráter compensatório, eu decidi sair do governo. E por isso não permaneci lá quatro anos, ou mais tempo.
Naqueles anos 2000 o Brasil finalmente comemorou que tinha vencido a fome. Nos últimos anos a fome voltou ao Brasil…
É, voltou nos governos [de Michel] Temer e [de Jair] Bolsonaro. O Brasil foi integrado ao mapa da fome da ONU [Organização das Nações Unidas].
Onde erramos como sociedade? Por que voltou?
Voltou porque exatamente não foram assegurados os direitos dos mais pobres. Essa é a questão. Imagina, um presidente que deixou morrer mais de 700 mil durante a pandemia de covid… Então, por descaso, por aporofobia, que é o horror a pobre que os bolsonaristas têm. Agora, sim, o Brasil está de novo saindo do mapa da fome. Ela foi muito reduzida nesses dois anos de governo Lula, um ano e meio praticamente. Acho que agora a gente vai sair de novo do mapa da fome. Mas foi interessante trabalhar naquele momento [do primeiro mandato Lula]. Apenas o meu papel era sociedade civil e o controle do Bolsa Família passou aos prefeitos e não mais dos fundos gestores como era do Fome Zero. Então por isso que eu não vi mais sentido em permanecer no governo.
Se fosse chamado, o senhor voltaria ao governo hoje?
Não, não. Não é a minha vocação. Eu não tenho vocação nem para a administração pública nem para iniciativa privada. Eu sempre fui um freelancer, enfim, não tenho essa vocação não. Prefiro preservar a minha liberdade.
O senhor sempre teve um posicionamento mais à esquerda, seja na Teologia da Libertação, seja no combate à ditadura, seja na proximidade com o Lula. Nestes tempos de polarização, ficou mais difícil se posicionar politicamente?
Para mim, não. Eu tenho 80 anos e a minha posição política está muito explícita, seja na minha trajetória de vida, seja nos meus livros, meus artigos. Eu sou uma pessoa de esquerda, eu sou uma pessoa que acha que no capitalismo a humanidade não tem futuro. Ainda defendo o socialismo, não seguindo os modelos conhecidos, mas tem que haver uma sociedade que assim como o direito ao voto é universal, o direito à riqueza também tem de ser universal. Ou seja: é falsa essa democracia que partilha a escolha política, mas não partilha os benefícios econômicos. Pelo contrário, privatiza e acumula. Na mão de uma minoria. Essa é minha posição clara e eu vou morrer assim: lutando por essa mudança, lutando por essa utopia.
Esta é uma posição cristã?
Ela decorre de uma posição cristã, evidente. Veja bem, eu como cristão sou discípulo de um prisioneiro político, como sempre reafirmo: Jesus não morreu nem de hepatite na cama, nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém. Ele foi preso, torturado, julgado pelos dois poderes políticos, o judaico e o romano, e condenado à pena de morte pelos romanos.
Então é uma posição cristã e é uma posição política, as duas coisas estão entremeadas: na minha vida e na vida de qualquer pessoa que assume alguma religião não há como fazer essa separação. Mas na sociedade a modernidade a faz. O grande desafio institucional é você não partidarizar as religiões e não confessionalizar a política.
No fim, o que vemos é justamente isso acontecendo…
Sim, principalmente aqui no Brasil com o governo anterior.
O senhor mencionou no começo da conversa a ditadura. Foi um período em que esteve preso e que viu amigos e companheiros serem mortos. Como o senhor se sente quando vê uma parcela significativa da sociedade pedindo a volta de um regime autoritário?
Isso é uma falha nossa, de nós, progressistas. Porque eu creio que depois de 13 anos de governo de PT, escolher um Bolsonaro para presidir o Brasil é um sinal de que nós fracassamos na educação política do povo. O povo, todos nós sofremos uma deseducação política 24 horas por dia. Basta ligar o rádio, ir para a escola, ver o jornal, ver a televisão.
E no meu ponto de vista é papel do governo, progressista, fazer a educação política do povo. E isso não tem sido feito. Então é normal que haja essa ascensão da direita no Brasil e no mundo. Vejo isso com muita tristeza, porque lutei arriscando a vida pela redemocratização do país, fui preso duas vezes, 15 dias em 1964, quatro anos de 1969 a 1973.
Como o governo deveria fazer isso, no seu entender, sem parecer uma propaganda?
É muito simples fazer isso. O Brasil por exemplo, o governo federal tem 400 mil agentes de saúde, que têm contato diretamente com a população mais carente, mais pobre. O agente de saúde, se ele é capacitado pelo método Paulo Freire, ele não vai simplesmente numa palafita ou numa favela onde a dona Maria tem uma crise crônica de tosse fornecer para ela um remédio ou um guia para que ela vá ao hospital ou ao posto de saúde. Ele vai refletir com ela as causas da doença: a falta de saneamento, as condições precárias em que ela vive… Isso é criar uma consciência crítica. Isso é um direito de cidadania.
Criar cidadãos, e não consumidores como quer o sistema capitalista. Por exemplo o Bolsa Família: atende 22 milhões de famílias, 90% mulheres. Há duas condicionalidades: manter a vacina das crianças e as crianças na escola. Eu acrescentaria uma terceira, que já propus ao presidente Lula: a capacitação profissional dessas mulheres, até para elas deixarem de depender da pecúnia da Bolsa Família, se tornarem independentes do governo federal. Aí você pergunta o que ela quer, se quer se capacitar em costura, em culinária, em artesanato, enfim. E em qualquer curso desses, se você faz pelo método Paulo Freire você cria uma consciência crítica. É evidente que a direita sempre vai chiar. Faça o que fizer, vão dizer que é isso, que é aquilo. Mas não tem importância. É preciso ousar.
Qual foi a resposta do presidente a essa sua ideia?
Ele concorda. Mas infelizmente não são criados os mecanismos necessários para se fazer funcionar. Até criou uma diretoria de educação popular. Então está lá. Mas ela tem uma ação restrita, até porque a secretaria geral ainda carece de um orçamento mais robusto que realmente permita um desempenho melhor.
A sugestão foi apresentada no atual mandato? Suas conversas são constantes?
Sim, neste mandato. Tenho um canal direto de comunicação com ele e, além disso, periodicamente a gente se encontra. No dia da posse conversei com ele por 40 minutos. Mas infelizmente as coisas não avançaram tanto quanto eu gostaria.
Na seara religiosa, como explicar a diferença entre a militância social e política e o sistema eleitoreiro praticado pela chamada "bancada da Bíblia", por exemplo?
Eu estou trabalhando atualmente numa tetralogia sobre os quatro evangelhos. Dois já foram analisados exaustivamente [e publicados os livros Jesus Militante, sobre o Evangelho de Marcos; e Jesus Rebelde, sobre o Evangelho de Mateus]. Ainda este ano eu espero que saia o Jesus Revolucionário, sobre o Evangelho de Lucas. Historicamente não há como você separar religião e política. A sabedoria consiste em não confessionalizar a política. Você não pode ter um Partido Democrata Cristão, isso é um absurdo. Porque o partido representa um segmento da população, seja ou não cristão. Ao mesmo tempo você não pode partidarizar a religião: não posso na minha igreja falar "aqui todos devem votar em tal partido nas próximas eleições". Isso é um abuso, e esse abuso tem de ser severamente combatido.
Mas ao longo da história a gente vê que a religião sempre teve uma forte conotação política. É preciso não confundir a convicção religiosa das pessoas com a convicção partidária ou ideológica. Mas não há como separar na vida das pessoas a religião e a política. Porque tanto a religião quanto a política servem para libertar ou para oprimir. Depende de como elas são conduzidas. Existem muitas políticas opressoras e existem políticas libertadoras. A mesma coisa na religião.
Jesus não veio fundar uma igreja, fundar uma religião. Ele veio restaurar um projeto político do que ele chamava de Reino de Deus. Era uma utopia política, baseada em dois pilares: nas relações pessoais, o amor, e nas relações sociais, a partilha dos bens. Essa é a dimensão importante na perspectiva do evangelho.
Para finalizar, como será a comemoração dos 80 anos?
Vivo em São Paulo, no convento dos dominicanos nas Perdizes. Não mais por virtude, mas por vício. O dia mesmo vou comemorar com meus irmãos em Belo Horizonte. Tenho seis irmãos, 16 sobrinhos e 24 sobrinhos-netos. Então a gente reúne a família porque não é todo dia que se faz 80 anos com saúde.
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