Por Luiz Felipe Pondé*
Todos temos medo do superjuiz, menos aqueles que são os seus puxa-sacos
A democracia brasileira não passa num teste básico da ciência política. O filósofo americano Francis Fukuyama dá a rota para este teste no colossal "As Origens da Ordem Política" (Rocco), seguido pelo segundo volume, "Ordem Política e Decadência Política".
Não é um teste complicado. E, ao mesmo tempo, ajuda a entender a razão de tanto intelectual orgânico estar babando de raiva desta Folha porque ela está cumprindo o seu papel de ser um veículo de imprensa e não "um armazém de secos e molhados" (Millôr Fernandes). Infelizmente, muitos colegas da mídia esqueceram que nossa função não é apoiar governo algum.
Trata-se do vazamento de mensagens do gabinete do superjuiz Alexandre de Moraes, de quem todos temos medo, a não ser aqueles que puxam o seu saco.
Não se trata de acusar ninguém —o mundo jurídico não é minha área, só corro riscos diante dos seus poderes sem limites. Trata-se de levar a frente uma questão e uma série de fatos que importam para a "saúde" do país— que vive na UTI, aliás.
O governo chegou mesmo a pensar em banir o WhatsApp, prova cabal da degeneração do governo do PT —Bolsonaro já havia degenerado antes. O X já é objeto de perseguição, agora o WhatsApp é o próximo da fila. E ainda se fala em "defesa da democracia". Piada de mau gosto. Mas voltemos ao teste do Fukuyama. Voltaremos logo a esse tema da hora.
Evidentemente que uma democracia pode ir razoavelmente bem num dos tópicos, e mal noutro. Não existe mundo perfeito, mas existe a Dinamarca —o próprio Fukuyama usa essa "metáfora" para falar de uma democracia que vai melhor, normalmente, do que as outras.
São três tópicos. O primeiro é se o Estado é funcional. Um Estado funcional entrega serviços a partir dos impostos que arrecada. Deve entregar infraestrutura. Deve manter o equilíbrio fiscal. Deve entregar saúde e educação públicas de qualidade. Deve criar mecanismos para que a miséria não tome conta da população. Deve garantir segurança pública. Basta?
Você deve ter percebido que todos os exemplos são exemplos de política de Estado. Na verdade, o Estado brasileiro não existe como criador e gestor de políticas de Estado, só existe governo. E governo é sempre atravessado pelos interesses eleitoreiros quando não miseravelmente ideológicos. A existência de políticas de Estado garante um certo limite aos governos e suas baixarias estruturais. O Brasil está reprovado nesse tópico.
O segundo tópico é o que se chama Estado de Direito. Uma democracia é um regime jurídico. Todos devem ser iguais perante a lei —isso nunca é pleno, claro. Esse tópico resvala na discussão sobre o desvario do poder de alguns superjuízes no país.
Vemos facilmente que o Brasil é a terra do "para os amigos tudo, para os inimigos a lei". Quem negar mente. Grande parte dos cidadãos do país sabe disso. Seja porque fazem parte dos amigos e mamam no governo, às vezes, ficando multimilionários em poucos anos, seja porque fazem parte dos não amigos —ou inimigos— e por isso restam-lhe as leis, os impostos e os abusos.
Apesar dos discursos pomposos sobre o Brasil não ser terra de ninguém, ele é. Melhor, ele tem dono e esse dono não são os cidadãos. Portanto, o Brasil reprova neste tópico também.
O terceiro tópico é o que se chama em ciência política de "accountability" —responsabilidade. Em relação ao Estado e ao governo, em todos os seus poderes, não há accountability no Brasil. Esse tópico está diretamente relacionado aos famosos freios e contrapesos na democracia. Os poderosos no Brasil não sofrem nenhuma ação efetiva do mecanismo de freios e contrapesos.
Esse tópico é essencial porque ele significa justamente a possibilidade institucional de se impor limites aos poderes da República. Hoje não há qualquer mecanismo de "accountability" que possa"checar" o poder dos superjuízes. Tampouco, do Legislativo ou do Executivo, logo, o Brasil reprova neste terceiro tópico também. O "‘affair’ das mensagens" que agora vazaram —como a Lava Jato vazou— é um caso de busca de "accountability". Não podem existir agentes públicos de poder sem limites.
* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2024/08/um-armazem-de-secos-e-molhados.shtml
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