Por Luiz Felipe Pondé*
Diante do pânico de que acusem você de racista, homofóbico, transfóbico, misógino, o melhor é se ajoelhar no altar 'woke'
A expressão "colabô", francês na origem, se referia às pessoas que, durante a ocupação nazista na França, colaboraram com o regime invasor. Claro que quando os nazistas caíram, não só os que colaboraram com eles foram à "fogueira", mas qualquer um que tivesse um desafeto que tenha sabido usar o momento para destruir seu inimigo.
Diante da nova forma de tirania na cultura, o novo colaboracionismo se caracteriza pela submissão do pensamento à pauta "woke". Diante do pânico de que acusem você de racista, homofóbico, transfóbico, misógino, o melhor é se ajoelhar diante do altar "woke" e jurar fidelidade ao seu clero.
Uma falsa suspeita de que você seja racista, homofóbico, transfóbico, misógino, destruirá sua vida se você tiver ambições intelectuais. Ou você se ajoelha ou desiste das letras e das artes. A coragem nunca foi uma virtude cultivada no meio das letras e das artes, ao contrário do que se propagandeia por aí.
"Ajoelhar-se diante do ‘wokismo’" é a imagem que a filósofa francesa Bérénice Levet usa em seu livro "La Courage de la Dissidence, l’Esprit Français contre le Wokisme" —a coragem da dissidência, o espírito francês contra o "wokismo"—, livro publicado em 2020. Evidentemente, sem tradução no Brasil.
Aqui, a imensa maioria das casas editorais ou estão atrás de best-sellers sem valor intelectual ou são aparelhos ideológicos. Vivemos uma nova onda de obscurantismo. O luto da cultura como atividade da inteligência livre está em pauta.
A tirania "woke", como afirma Levet, reúne identitarismo, culto das minorias, diversidade, crítica decolonial, culto "LGBTiste" —em francês— "black studies", feminismo.
A tese de Madame Levet é que o "wokismo" é uma forma de destruição do pensamento nas letras e nas artes que serve bem aos preguiçosos. Invenção americana, Levet lamenta que a França, imensamente rica em sua cultura, esteja se curvando à castração feminista, às obsessões de gênero e ao discurso racialista.
No caso do Brasil, como somos pobres em tudo, a tirania "woke" já garantiu o estrago da produção cultural, no mínimo, por uns cem anos.
Sua proposta é que a França e o Ocidente como um todo parem com o "mimimi" de ficar se sentindo culpado e responda, com seu repertório vasto, aos abusos do clero "woke". Este clero não representa nenhum "avanço" intelectual, se constitui apenas num violento e predador processo de reserva de mercado cultural.
No Brasil, mais uma vez, já era. Todos os níveis das produções de letras e artes estão cooptados, e quem recusar, perde emprego, perde patrocínio, perde amigos, será apagado da história da cultura. Trata-se de um dos momentos mais covardes da história do pensamento, da cultura e das artes em nosso país.
Madame Levet cita, por exemplo, a Marquesa de Sévigné (1626-1696), como sendo um exemplo da superioridade da cultura francesa sobre o "blábláblá woke". Suas cartas, escritas para a filha, representam um tesouro da análise fina da condição humana, típicas do século 17 francês. A Marquesa de Sévigné foi contemporânea de gente como Descartes, Pascal, Malebranche, Gassendi, todos grandes expoentes da filosofia francesa até hoje, e conhecia bem esse universo.
Simpática ao jansenismo —assim como Pascal que era um assumido jansenista—, a Marquesa de Sévigné detinha, como os jansenistas, um senso agudo acerca da natureza humana. O século 17 francês fundou a tradição do moralismo em filosofia, que significa uma fina anatomia da alma humana, e não "cuspir regras", como pensa o vão senso comum.
Nas palavras de Madame Levet, uma linha escrita pela Marquesa de Sévigné vale mais do que tudo nesse paradigma tirânico, sufocante e empobrecedor que é o "wokismo". E ela não para aí.
Citando Tocqueville —século 19—, Madame Levet lembra o vaticínio que o brilhante autor lançou sobre a democracia americana e seus cidadãos: paixão pela simplicidade, superficialidade e generalidades. E afirma Tocqueville: incluindo a gente das letras. Uma das vantagens do "wokismo" hoje é elevar à categoria de celebridade intelectual gente preguiçosa, travestindo-se de indignação santa.
* Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2024/08/culto-ao-feminismo-as-minorias-ao-lgbtismo-e-ao-identitarismo-e-tirania.shtml
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