domingo, 11 de agosto de 2024

‘Saúde mental não é uma questão de eliminar o mal-estar nem de hipertrofiar o bem-estar’

 Por 34º Curso Estadão de Jornalismo

Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP

Para psicanalista Christian Dunker, jovens da geração Z têm dificuldade de lidar com o fato de não estarem tranquilos; compras acabam virando terapia

A busca pelo alívio emocional e a influência do universo digital impulsionam muitas pessoas a encararem o consumo como uma forma de “terapia” não medicamentosa e não psíquica. É o que comenta o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). “Com a exposição constante a anúncios e a diferentes formas de publicidade, a probabilidade de um produto ou serviço nos atrair em momentos em que estamos em um pico ascendente de ansiedade é muito grande”, explica

No caso da geração Z, a situação se acentua porque os jovens geralmente sentem mais dificuldade na hora de lidar com angústia, mal-estar e ansiedade. “Não estar tranquilo é um problema para eles”, diz o psicanalista. “Saúde mental não é uma questão de eliminar o mal-estar nem hipertrofiar o bem-estar.”

Pedro Lima/Estadão

Dunker acredita que a negação é um dos piores caminhos para se tratar qualquer transtorno e defende a importância do autoconhecimento e da busca por terapias tradicionais para lidar com a ansiedade. “O básico é não pular este momento em que a pessoa reconhece que está ansiosa e que precisa fazer alguma coisa para resolver o que está sentindo. Se familiarizar com o que está acontecendo com você naquela hora”, afirma. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.


• Quais os principais motivos para o consumo exacerbado, do ponto de vista da psicanálise?

Quando nos encontramos em um estado de pensamentos circulares e com aquela angústia sobre o futuro, sentimos a necessidade de interromper esse fluxo. Com a exposição constante a anúncios e a diferentes formas de publicidade, a probabilidade de um produto ou serviço nos atrair em momentos em que estamos em um pico ascendente de ansiedade é muito grande. Assim, para a pessoa, o consumo pode ser encarado como uma forma de “terapia” não medicamentosa e não psíquica. O consumo impulsivo, em grande parte, explora esses momentos de fragilidade. Mas a gente deve separar impulsão e compulsão. A compulsão envolve uma premeditação, quando a pessoa, em momentos de aflição, precisa se acalmar. Então, ela vai ao shopping, faz compras digitais e pode envolver a aquisição de objetos de baixo custo de forma constante, quase como um ritual. Já o consumo impulsivo é mais errático e pode resultar em compras significativamente caras, que endividam a pessoa, motivadas por uma sedução publicitária, ou na aquisição de objetos desnecessários que pareciam essenciais no momento e depois a pessoa se desilude e acaba percebendo mais claramente que aquilo é um problema.


• O mecanismo que nos faz extrair prazer das redes sociais tem alguma relação com a forma como sentimos prazer ao fazer compras?

Sim. Esse prazer está associado ao ato de adquirir, envolvendo a mobilização de uma atenção decisional e a qualificação do objeto. Esse processo nos dá a sensação de controle sobre nosso mundo, o que, por sua vez, gera uma satisfação ligada à compra. Contudo, a ideia de que isso está diretamente ligado ao mecanismo de recaptação da dopamina tem sido questionada pela pesquisa contemporânea. Na verdade, várias áreas do cérebro relacionadas à satisfação são mobilizadas. Algumas pessoas compram de forma compulsiva, outras de forma impulsiva, e há ainda quem compre para tratar a depressão ou para obter status, na linha do que (o economista e sociólogo americano) Thorstein Veblen chama de consumo conspícuo. Esse tipo de compra, que busca diferenciar o indivíduo através de objetos caros e luxuosos, está mais relacionado à percepção de como seremos vistos pelos outros. Além da dopamina, outros neurotransmissores, como endorfina, adrenalina e serotonina, estão envolvidos, indicando que o prazer ligado ao consumo pode variar significativamente. Existe, ainda, um componente geracional importante na atitude diante da compra, com adolescentes sendo mais propensos a compras impulsivas. Isso é refletido nas estratégias de publicidade, que variam de acordo com a faixa etária, com anúncios coloridos para adolescentes, diferentemente de abordagens para adultos e idosos.


• Como o uso das redes sociais afeta as opiniões e os desejos de consumo dos mais jovens?

A geração Z é a primeira nascida e criada em ambiente digital, onde você faz seu avatar, define quem você quer receber na sua timeline, quem você quer excluir. Você edita a sua vida, posta aqueles grandes momentos e deixa de fora os fracassos. Isso se aplica ao consumo a partir do ponto em que, no universo digital, ele vai ter as mesmas propriedades. É um consumo ligado ao seu grupo de referência, ao seu estilo. E ele vai ser microssegmentado a partir do seu ‘tagueamento’. A publicidade já está pensando nessa estrutura narrativa de videogame. Você vai produzindo pontos de pertencimento e de presença.


A geração Z está mais vulnerável a isso do que outras gerações?

Há vários elementos que são fragilizadores da geração Z em relação ao consumo. Mas existem outros que são protetivos. Por exemplo: o peso de algumas marcas. Já foi algo relacionado à exclusão social, se você tem uma marca mais cara ou mais barata. A geração Z não pensa assim. Eles percebem que essa é a sua maneira de se posicionar. Claro que pessoas que são exceções à regra sempre vão existir, mas você tem um tipo de comparação com o outro que não está tão marcado pelos objetos ostensivos que cada um possui. A ideia do consumo de luxo não é uma ideia que ataque a geração Z como ataca as anteriores.


•O senhor já comentou que é preciso redimensionar os desejos para tratar a ansiedade. Como os jovens conseguem fazer isso estando, ainda assim, imersos nas redes sociais?

Essa é uma questão interessante para a gente não demonizar as redes. A atitude de tirar esse objeto (o celular), como proibir nas escolas, é arcaica e condenada a perder. Todas essas “batalhas” mostraram que a tecnologia acaba ficando. Muitas vezes em outro modo de uso, em outro tamanho. E acho que é isso que está acontecendo, principalmente quando os próprios adolescentes começam a perceber intuitivamente que precisam encontrar caminhos melhores para tratar a ansiedade, a angústia e o mal-estar. A gente está discutindo muito a racionalidade diagnóstica. A ansiedade causada pela tentativa de controlar a vida interna a partir da realidade externa é diferente da ansiedade gerada por algo desconhecido, mas que causa uma reação paradoxal de medo. A ansiedade ligada à tristeza é diferente de uma ansiedade ligada à agressividade, que é diferente de uma ansiedade ligada, por exemplo, à alegria, que vai passar despercebida. E como podemos tratar isso? Aumentando a concentração dos pensamentos, aumentando o sentimento de que tal coisa é importante, de que preciso estar presente, dedicado àquela tarefa. A geração Z, generalizando um pouco, acha que não deveria estar sentindo isso. Não estar tranquilo é um problema para eles. A negação é um dos piores caminhos para se tratar qualquer transtorno. E achar que a ansiedade não tem nada a ver com o que está acontecendo no mundo ou com você é errado. O primeiro e mais conhecido remédio para a ansiedade é falar com alguém. E nesse processo você vai se acalmando e encontrando outros destinos para essa ansiedade. A ansiedade e a depressão compõem um mesmo quadro. Uma orienta o sujeito para o passado (depressão) e outra para o futuro (ansiedade). Assim, saúde mental não é uma questão de eliminar o mal-estar e nem hipertrofiar o bem-estar. A relação com saúde mental e ansiedade é estar presente na situação que você está no momento.


• Para superar esse consumo problemático, essa busca por prazer no consumo, ao invés de substituir por outros prazeres, o ideal seria buscar esse “estar presente”, como o senhor mencionou?

Precisamos detalhar o que é um consumo problemático. Existe uma descrição boa de um fenômeno que fala sobre uma fase na vida chamada de fase aquisitiva. A geração Z está nessa fase. O padrão de consumo do adolescente é preferir coisas que não são permanentes no tempo. Ele está ligado ali a um tênis, a um carro, uma roupa, algo temporário. É uma característica (diferente) do jovem adulto para o adulto. O adulto muda completamente o padrão de consumo. Para tratar isso, aquilo que serve para um, pode não ser o melhor caminho para o outro. O básico é não pular este momento em que a pessoa reconhece que está ansiosa e que precisa fazer alguma coisa para resolver o que está sentindo. Se familiarizar com o que está acontecendo com você naquela hora. Outros caminhos para lidar com a ansiedade podem ser a meditação, por exemplo. Ela introduz a pausa, a descontinuidade. Não sair de uma tela e entrar em outra logo em seguida. 

Fonte:  https://www.estadao.com.br/saude/saude-mental-nao-e-uma-questao-de-eliminar-o-mal-estar-nem-de-hipertrofiar-o-bem-estar/

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