Anselmo Borges*
O enigma parece ser não tanto o espírito, mas a matéria. Embora o espírito seja enigmático na sua relação com a matéria - como é que, estando na raiz o espírito, há matéria? -, parece menos compreensível como é que da matéria resulta o espírito, como é que a matéria se abre em espírito. O dualismo antropológico é cada vez mais inadmissível; mas como entender a emergência do espírito a partir da matéria?
Não têm faltado afirmações reducionistas do Homem. “O Homem não passa de um objecto material e tem apenas propriedades físicas” (D. M. Armstrong, 1968). “Toda a conduta humana terá, um dia, uma explicação mecânica” (D. Mackay, 1980). “As máquinas inteligentes tomarão pouco a pouco o controlo de tudo, acabando por apoderar-se do mundo da política... Pensar é simplesmente um processo físico-químico (L. Ruiz de Gopegui, 1983). “O espírito é uma máquina” (M. Minsky, 1987).
Hoje, com as novas técnicas da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, consegue-se visualizar imagens das regiões do cérebro que entram em acção aquando das diferentes operações mentais. Assim, António Damásio escreveu que, embora avesso a previsões - aliás, com o tempo, parece-me cada vez mais prudente em relação à explicação científica da consciência -, lhe parece seguro poder afirmar que, até 2050, a acumulação do saber sobre os fenómenos biológicos em conexão com a mente consciente fará com que “desapareçam as tradicionais separações de corpo e alma, cérebro e espírito.”
Talvez haja quem receie que, mediante a compreensão da sua estrutura material, algo tão precioso e digno como o espírito humano se degrade ou desapareça. Mas António Damásio previne que “a explicação das origens e do funcionamento do espírito não acabará com ele.” O nosso assombro estender-se-á até essas incríveis microestruturas do organismo e às suas funções que permitem o aparecimento do espírito e da autoconsciência - não se esqueça de que o cérebro com os seus cem mil milhões de neurónios e um número incalculável de sinapses é a estrutura biológica mais complexa que conhecemos. O espírito sobreviverá à sua explicação biológico-neuronal, como a rosa continua a enfeitiçar-nos com o seu perfume, depois de analisada a sua estrutura molecular.
A questão da consciência continuará a fascinar-nos, apesar de todos os avanços da neurobiologia. A razão está em que o corpo e o cérebro são objectivamente acessíveis. A consciência, porém, é íntima e ineliminavelmente subjectiva: é sempre cada um, cada uma, a viver-se a si mesmo, a si mesma, subjectivamente, de modo único e intransferível, sendo dada, portanto, na experiência pessoal.
Demos um exemplo, apesar de tudo, menos exigente: um neurocientista que tivesse todos os conhecimentos sobre os mecanismos com que o cérebro processa a impressão da cor azul, sem a sua vivência real consciente, não saberia o que é o azul.
O problema permanecerá: como é que processos eléctricos e físico-químicos originam a experiência subjectiva. Há uma correlação entre o cérebro e a consciência, mas como é que a experiência de si na primeira pessoa surge de processos e factos da ordem da terceira pessoa?
Mediante as novas técnicas, percepcionamos a base neurobiológica do pensamento. Significa isso que temos, desse modo, acesso ao conteúdo do pensamento?
Reflectindo sobre esta problemática, o número de Julho-Agosto de Philosophie Magazine pergunta: “Observamos no cérebro correntes eléctricas, fenómenos de activação, mas algum dia veremos nele o próprio pensamento?” Onde está a liberdade, no cérebro? Onde estão a autoconsciência e o eu, no cérebro?
Como sublinhou o célebre historiador Jean Delumeau, há realmente hoje correntes reducionistas, no sentido neuronal ou como se o Homem não passasse de um “mosaico de genes”. Mas não se esquece então que é o Homem que faz a ciência e lhe dá sentido?
“Se o Universo é o fruto do acaso, se o Homem não foi querido por um Ser que transcende a História, se a nossa liberdade é ilusória, nada tem sentido e, segundo a fórmula trágica de Léon-Paul Fargue, ‘a vida é o cabaret do nada’.” E continua: se, como pergunta Jean-François Lambert, o Homem é da mesma natureza que os outros seres, donde lhe vem o seu valor e dignidade? Onde se fundamentam os Direitos Humanos? Se se não é bom ou mau, “mas apenas bem ou mal programado”, ainda se poderá falar de liberdade e responsabilidade?
* Padre e professor de Filosofia
Fonte: https://www.dn.pt/2012130422/o-homem-questao-para-si-mesmo-1-o-cerebro-e-o-espirito/ - Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário