sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A psicanálise como crítica ao cientificismo

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Apoiando-se em Jacques Lacan e Ian Hacking, Verdade e Sofrimento, de Paulo Beer, repele o rótulo de pseudociência, mas vê na psicanálise uma crítica dos conhecimentos institucionalizados. Ao fazê-lo, desnuda a tensa relação entre o saber e a verdade

Se o contexto histórico influencia o desdobramento científico, a ciência não é por ele limitada. De igual modo, essa autonomia relativa não implica que sua produção seja indiferente à especificidade histórica. Esse é o ponto central e sobre sua órbita rodopiam formas de pensar criticamente à ciência. O livro de Paulo Beer, Verdade e sofrimento: psicanálise, ciência e a produção de sintomas1, faz esse esforço ao livrá-la de mitificar-se à autoridade de um saber dogmático: uma noção de ciência assentada no trono do “saber absoluto2” conferindo qual saber é válido e qual não é.

Esse é, portanto, um livro que chega em momento oportuno: se não coloca a ciência no oratório, fazendo da vida dos cientistas uma hagiografia dos santos, tampouco desliza no fosso dos negacionismos da extrema-direita ou ainda nos relativismos paralisantes do progressismo de esquerda. Nele, a psicanálise se inscreve como uma crítica dos saberes estabilizados tendo em vista que na sua práxis – união da prática do cuidado com uma teoria desenvolvida a partir da posição singular do sujeito – desnuda a tensa relação entre o saber e a verdade.

Na companhia de dois virgílios – Ian Hacking e Jacques Lacan – Beer reflete sobre a ciência moderna, seu ponto de partida: a verdade como uma questão “que reúne epistemologia, ontologia, ética e política3”. Hacking, provavelmente um dos maiores filósofos da ciência contemporânea, exprime uma posição iconoclasta: além de uma recusa à ideia de adequação entre linguagem e mundo dispensa também o idealismo que escapa às mediações da realidade.

A propósito, em Verdade e sofrimento é o filósofo canadense quem nos conduz aos debates centrais acerca do estatuto da verdade e suas formas de construção do saber. Se a decomposição de um significado em pequenas partes, que constituem um objeto, implicou a reformulação do racionalismo, sendo Descartes uma das figuras mais proeminentes, como pensar a definição da verdade? Esse é o problema que dá o tom na modernidade e dele ressalta uma conclusão comum: a verdade depende de um esforço racional.

Hacking investiga os limites dessa conclusão. Se a absoluta verdade, tal como o “saber absoluto”, não se reduz à correspondência nominal entre a coisa e o seu conceito tampouco a noção de uma “evidência” clara e objetiva, como sonhava Descartes, serve para dar conta da multitude que compõe a experiência com a realidade. Pelo contrário, como mostra Verdade e sofrimento, o senso comum de que as “evidências” se traduzam imediatamente em verdades não resiste a um exame objetivo.

Assim, a noção de “evidência” – separada da prática científica e absorvida pela visão de mundo atual – tornou-se uma mera ideologice – mistura de vigarice com o sentido mais rastaquera de ideologia. Uma forma de garantir diagnósticos estabelecidos não pela singularidade no trato dos sintomas, mas, pela necessidade da indústria farmacológica que, ao financiar pesquisas, busca retornos rápidos através de abertura de mercados da saúde (ou da doença?).

Como assevera Paulo Beer: “Ao invés de inovações que apresentem novas formas de tratar transtornos ou aumento significativo na eficácia das drogas, os esforços têm sido direcionados para a criação de mercados consumidores – via a proposição de novos transtornos.4” O caso do Japão, e a construção da depressão como mercado, é paradigmático.

A certeza etiológica acerca das doenças, a busca por uma evidência traduzida num diagnóstico instantâneo – nos mostra Beer – acaba resvalando na objetificação do sujeito portador do sintoma. Uma ótima oportunidade mercadológica que manda às favas a relação com a verdade do sofrimento. Assim, o livro nos faz perceber que “isso que foi nomeado como organicismo, biologicismo… indica a desconsideração radical dos efeitos da linguagem sobre os objetos5” e seus sujeitos. Uma prática embasada por um discurso “todo poderoso” que ao objetificar o sujeito no processo elide também a experiência com o sintoma e a verdade que ele expressa.

É aqui que entra Lacan. Resistente a pensar à psicanálise como uma ciência do inconsciente, o psicanalista põe em relevo a questão da verdade num exercício que irá persegui-lo a partir dos anos 1950 e se tornará o centro de seu pensamento6. No texto Ciência e Verdade ficamos convencidos das consequências devastadoras organizadas pela redução objetivista dos sintomas psíquicos ao fisicalismo orgânico7.

Lacan percebe que na virada do século XX, a crise do Esclarecimento (Aufklärung) obrigou a ciência a descer do pedestal das verdades últimas ocasionando mudanças na sua produção. As inovações da física e da química deixaram claro que o saber se estabelece por variados sistemas cognitivos (estilos de raciocínios que são construtos lógico-formais e assentam bases conceituais de um campo específico).

Assim, a diferença radicada nessa mudança se baseou na conclusão de que a busca pela identidade entre a coisa e o fenômeno é só mais uma das variadas funções da verdade. Se o saber, organizado de maneira anterior a relação com o objeto, eliminava a possibilidade de apreender aquilo que negava seus próprios pressupostos – ou seja: se estabelecia um modelo e se encaixava a realidade nele – com essas transformações, o reducionismo lógico-formal foi posto em xeque.

Lacan, próximo de uma constelação de críticos da ciência, percebeu que a psicanálise, naquilo que tinha de novidade – o inconsciente e, portanto, uma nova forma de pensar a subjetividade na sua relação com os sintomas – também demonstrava a relação conflitiva entre saber e verdade. Transgressora, ao elaborar a função do inconsciente e descentrar a relação do sujeito do cogito, a psicanálise deu condições para apreender a resistência que o saber promove diante da verdade ao trazer à luz o sujeito do inconsciente.

É por essa porta que Paulo Beer chegará à conclusão que o sintoma é a manifestação da verdade. “a articulação da verdade como sintoma pode ser entendida de uma dupla maneira: como a expressão momentânea de um conflito que está ali positivado… mas também como algo que aponta para além dessa positividade, indicando que apesar dessa expressão momentânea há algo que não se esgota nos conteúdos mobilizados8”.

Por isso, a experiência psicanalítica não pode ter seu objeto isolado no registro de um procedimento operatório, ligado à noção de experimento, reproduzível de maneira alheia à subjetividade. Ao colocar o sujeito no centro das preocupações em torno de seus sintomas psíquicos, a psicanálise abre caminhos para uma investigação cujo saber deve ser relativizado em função da verdade. A verdade se inscreve, portanto, como sintoma.

Aqui há um escândalo fundamental: o exercício fundamental do saber é saber que os seus pressupostos devem ser relativizados em função da verdade. A psicanálise é uma ciência sem um saber, como dizia Lacan, porque seu modo de proceder à verdade é singular e se afasta de maneira radical de qualquer metodologia prévia. Isso não significa que não há um conhecimento organizado pela psicanálise, mas ele continuamente se submete à prova conduzida pelo sintoma enquanto verdade de algo que escapa à normalidade.

Essa conclusão se deu a Lacan ao perceber que as evoluções lógicas e os problemas abertos no campo matemático acabavam por abalar a fundamentação do método inscrita no “saber absoluto”. E, assim, o inconsciente com sua lógica casava-se com uma redefinição do próprio campo científico fazendo com que o sujeito do cogito cedesse ao sujeito do inconsciente.

Antes de terminar é preciso insistir em algo fundamental que ecoa nas entrelinhas de Verdade e sofrimento: o problema não é a evidência buscada pelos axiomas gerais que concretizam uma dada epistemologia orquestrada pela experiência científica. O problema é quando a noção de “evidência” se transfigura em ideologice mercadológica para vender remédios caros e de comprovada ineficácia.

O problema, portanto, é quando essa “evidência”, tão alardeada pelos ideólogos da redução organicista, se mostra de acordo com suas próprias bases frágil e inconsistente. No livro, há diversos exemplos da fragilidade dessa noção ideologizada e da frugalidade da manutenção de uma psiquiatria que regrediu a olhos vistos ao século XIX. Hoje desfilam diversos doutores Bacamartes que, como o alienista de Machado, juram prestar contas só à ciência fingindo não ver o quanto seus pressupostos se aliam à abertura de novos mercados de doenças mundo afora.

* Psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Unifesp.

1 Beer, Paulo. Verdade e sofrimento: psicanálise, ciência e a produção de sintomas. São Paulo: Perspectiva, 2023.

2 As aspas se justificam tendo em vista que o saber absoluto, conceito hegeliano, é um dos mais importantes conceitos da filosofia, remontando a tradição filosófica, saber absoluto é, em termos hegelianos, “não saber que se sabe ao saber que não sabe”

3 Beer, 2023, p.XXXIV

4 BEER, 2023, p.186

5 BEER, 2023, p.47

6 BEER, 2023, p.103

7 Acerca dessa questão escrevi o texto abaixo: https://outraspalavras.net/outrasaude/contra-a-industria-da-loucura-so-uma-politica-da-loucura/

8 BEER, 2023, p.156

Fonte:  https://outraspalavras.net/poeticas/a-psicanalise-como-critica-ao-cientificismo/

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