domingo, 18 de agosto de 2024

É impossível amar o próximo

Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem" 

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de S.Paulo no dia 18.ago.2024, mostra o desenho de uma pessoa correndo sobre um triângulo tridimensional de Penrose, onde a superfície de uma das faces não apresenta continuidade nela mesma dando a ilusão de que está sempre mudando de lado.
 Adams Carvalho/Folhapress


Se demolimos de tal forma as vigas da razão, 
tudo desmorona

É impossível amar "o próximo", pois não se ama o que não se conhece. E por que não se conhece "o próximo"? Pois não sabemos onde ele está. E por que não sabemos onde ele está? Pois existe na língua portuguesa uma seriíssima confusão lógico-semântico-geográfica: "o próximo" é "o próximo" ou "o próximo" é "o que vem" depois do "próximo"? Ou, posto de outra forma (a mesma): "o que vem" é "o que vem" ou "o próximo" depois do "que vem"? A taxa de juros, a posição do governo sobre a Venezuela, o debate dos candidatos a prefeito, tudo isso é menor diante desta barafunda linguística.

Vivemos num país polarizado e a questão do "próximo" não foge à regra. Aposto que, se fizessem um Datafolha, metade das pessoas diria que a "próxima" segunda é dia 19 de agosto e outra metade diria que é dia 26. Já perdi pontos de ônibus por causa desta celeuma. Já perdi festas. Talvez tenha perdido oportunidades de emprego, amores, prêmios da Loto e outros borogodós. Qual será o próximo? (Não digo "qual será o que vem?", pois, se perdi, evidente que não vem).

Sou um democrata, mas só diante da democracia. Definir se a Terra é redonda ou plana não passa por um plebiscito. A metade dos falantes do português que está certa, a metade terraglobista à qual me filio, entende que próximo é o oposto de distante. De modo que se eu te digo "vou fazer um churrasco no próximo fim de semana" é no primeiro fim de semana que vier, partindo de hoje. (E se alguém conseguir partir de outro dia senão de hoje, faça a gentileza de me trazer de presente aquele skate voador de "De Volta para o Futuro" —sempre paguei um pau). Da mesma forma, "o que vem" é o que está mais próximo, ou seja, o primeiro —seja um fim de semana, um ponto de ônibus, um skate voador.

Há, porém, entre nós, os semeadores da discórdia, os que usam tanto "o próximo" quanto "o que vem" como o segundo. Sei bem de onde nasce o erro. Quando a gente fala "não neste fim de semana, no próximo" ou "não neste ponto de ônibus, no que vem", estamos mencionando o segundo. Mas prestem atenção, ó incultos agricultores da balbúrdia, na primeira metade da oração: "não neste".

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2024/08/e-impossivel-amar-o-proximo.shtml

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