domingo, 18 de agosto de 2024

Visões da vida e da morte

| 17 Ago 2024

Hölderlin: “A vida é morte e a morte é também uma vida.” Pintura: Vida e Morte de Gustav Klimt (1915).

A morte espelho da vida

Onde há hoje a angústia da perda levanta-se possivelmente uma árvore. Mas que árvores de vida plantadas são essas que poderão abrigar ou atenuar a nossa definitiva tormenta? O tempo da morte, da minha e da tua, é certamente um Sábado pascal, o tempo do silêncio, a angústia de uma ausência que se planta no terceiro dia, dia de florescimento e de travessia. Todos nós já teremos passado ou passaremos por este tempo sabático intersticial, entre a sexta-feira da dor e o nascimento novo do espírito, entre a tristeza de uma ausência e a alegria do reencontro. Há uma questão essencial em todo o mistério da morte, para a qual todas as respostas serão sempre insuficientes. Há algo para além da morte? Mas sobre esta questão, como tantas outras nunca esqueça um dito sapiencial, do filósofo Ludwig Wittgenstein: «Acerca daquilo que não se pode ou sabe falar, tem que se ficar em silêncio» diante do «sentimento do mistério da vida» (Albert Einstein).

Pensemos por um instante no seguinte: suponhamos que recebíamos um bilhete em que dizia que tínhamos apenas um dia de vida, o que faríamos de essencial? Imaginemos ainda, depois de morrermos, se nos fosse dada a possibilidade de regressar à vida por um dia, o que faríamos? O que nos faz pensar a morte de alguém que amamos, com quem convivemos, de alguém que nos lançou para vida, cuidou e acompanhou maternalmente? O que significa prestar memória a um corpo presente quando a vida aparentemente já está ausente? O que é uma vida boa, bela e justa, bem vivida? Que vida boa pode abrir para uma boa morte quando os cuidados de fim de vida são quase inexistentes se comparados com os neonatais? Como afrontar ou atravessar o nosso morrer ou o morrer do outro, se afrontar ou atravessar a vida ainda não sabemos? Como enfrentar e assumir o nosso morrer se as condições existenciais de uma grande parte da humanidade são extremamente precárias e até desumanas? Como podemos adormecer tranquilamente com os «suspiros longos de quem morre por cuidar»?[1]

Há um verso do poeta Hölderlin que versa assim: «A vida é morte e a morte é também uma vida»[2] (cf. também o quadro de Gustav Klimt, «A Vida e a Morte», 1915), porque carregamos estranhamento em nós a possibilidade de vida e a possibilidade de morte. Estranha condição a nossa! O caminho que Cristo abre é o da vida à morte e da morte à vida. O caminho crente abre-nos para o mistério infinito e espantoso da Vida, para o vir em devir de um corpo ressuscitado, para um outro modo de ser invisível no interior do próprio mundo visível. Seremos simplesmente seres-para-a-morte como pensava Heidegger? Talvez a questão seja algo mais complexo e subtil. O grande cientista e físico do século XX, Albert Einstein, o célebre autor da «Carta de Deus», afirmava o seguinte:

Como é estranha a nossa condição de mortais. Cada um de nós veio aqui fazer uma breve visita. Ninguém sabe para quê, mas às vezes julga senti-lo […]; sabe-se, porém, que cada um existe para os outros seres humanos […]. Todos os dias penso imensas vezes que o meu exterior e interior assentam sobre o labor dos outros homens, quer dos vivos quer dos que já faleceram, de modo que tenho de me esforçar por dar na mesma medida em que recebi e continuo a receber […]. O que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério. É este sentimento fundamental que se detém junto ao berço da verdadeira arte e da ciência. Quem nunca o experimentou nem sabe já admirar-se ou espantar-se, pode considerar-se morto, sem luz, totalmente cego! A vivência do mistério – embora com laivos de temor – criou também a religião. A consciência da existência de tudo quanto para nós é impenetrável, de tudo quanto é manifestação da mais profunda razão e da mais deslumbrante beleza e que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais primitivas, essa consciência, esse sentimento, constituem a verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e em mais nenhum, pertenço à classe dos homens profundamente religiosos […]. A mim basta-me o mistério da eternidade da vida, a consciência e o pressentimento da admirável elaboração do ser, assim como o humilde esforço para compreender uma partícula, por mais pequena que seja, da razão que se manifesta na natureza.[3]

Face à iminência da morte, da minha ou de outrem, procuramos não tanto respostas, mas sim uma proximidade humana e divina que o abra para aquilo que nos transcende ou supera as nossas forças humanas: a busca do amor que une os seres humanos mesmo na morte. A morte é talvez o mistério dos mistérios, o limiar da própria vida, o que é mais de inacessível à nossa compreensão. A morte dos outros, dado que nunca ninguém assiste à sua própria morte, afronta as nossas concepções de vida, questiona os nossos comportamentos, as palavras, os gestos, a presença luminosa ou não que cada um é ou foi para alguém no tempo que lhe foi dado a viver. A morte questiona-nos profundamente. Olhar a vida a partir deste ângulo da morte muda tudo. Não estamos muito habituados a isso, porque vemos sempre em linha recta, sem curvaturas, pois acreditamos ser infinita a nossa vida, sobretudo quando se é jovem.

A morte questiona a vida porque da vida ela faz inteiramente parte, embora pensemos e sintamos que não. Não somos muito dados a pensar nela, pois julgamos ter o tempo todo à nossa disposição, como se fossemos imortais. Mas quando ela chega, bate-nos à porta, sem pedir licença, quase de improviso. Ela é o momento derradeiro da nossa passagem pelo mundo, diz-se. Mas onde mora o perigo, mora também o que nos poderá salvar do silêncio sepulcral e da solidão extrema, uma salvação que não produzimos nós mesmos nem podemos prever o seu momento, como não planeamos nem decidimos a nossa própria morte.

Todavia, e se a morte fosse um começo de uma nova forma de relação, a possibilidade de uma comunhão maior, que envolve os que ficam e os que já partiram? E como podemos atravessar ou afrontar este momento? Cada um no seu segredo saberá. Cada um tem o seu modo e o seu tempo de enfrentar este acontecimento que chega a todos. Talvez o silêncio do luto seja a forma mais profunda de a afrontarmos. A psicóloga Marie de Hennezel, que trabalha com doentes terminais de cancro e Sida, em Paris, no seu livro A morte íntima, diz-nos que «os que morrem ensinam-nos a viver». Há aqui uma verdade profunda na própria morte. Há uma arte de morrer como há uma arte de viver. Entre o momento da morte e a sepultura, há todo um ritual, um luto, um silêncio, uma passagem litúrgica, que é preciosa para esta meditação sobre a nossa condição de fragilidade e precariedade vital.

O que significa assumir e afrontar a morte, a sua morte e a morte de alguém que nos é próximo e querido? Como fazê-lo? A partir da fé, da razão, da ciência ou da medicina? Todas elas são possíveis. É a morte o último episódio da vida humana ou é a morte um atributo da própria vida, algo que está inscrito no próprio viver e que lhe dá intensidade? E se a morte fosse antes de tudo um grande e último questionamento sobre o modo como vemos o mundo e vivemos a vida? Nascemos, crescemos e morremos. Mas o que deixamos atrás de nós? Um rasto de bondade e de felicidade ou um rasto de destruição e violência? Como nos preparamos para a morte ou não pensaremos nunca nela? O que nos espera?

Talvez adormecidos, anestesiados, inebriados, excessivos e encantados com bens materiais, raramente queremos pensar e passar este umbral da vida… A morte como umbral da vida! Sigmund Freud deixa-nos o seguinte conselho: «Se queres suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte»,[4] como se fizesse eco ao celebre provérbio latino «Si vis pacem, para bellum» (se queres paz, prepara-te para a guerra). E não será a morte precisamente a mais dura batalha ou luta a travar? Se vivemos na alucinação do divertimento eterno, como podemos preparar-nos para esse combate? E, todavia, o fluxo do tempo corre e chega de improviso na calada da noite, questionado radicalmente o elixir da nossa eterna juventude!

No fundo, tudo parte de um não-saber. Não sabemos tudo. E é bom que assim seja. Blaise Pascal escrevia: «Tudo o que sei é que devo morrer em breve; mas o que mais ignoro é essa mesma morte, que não saberei evitar». Dar lugar ao imprevisto, deixar espaço para o acontecer fluído da vida, para a surpresa, para o inacabado. A morte só revela que somos seres inacabados. Nem sabemos o que é a morte nem sabemos bem o que é a vida. Tudo é um caminho de procura e de desencontro, de encontro e de perda. Mas também tudo está em como vivemos, como procuramos e como encontramos. Sozinhos ou com os outros? Fechados no seu próprio eu ou na dádiva de si? Sartre dizia para temer menos a morte e mais uma vida insuficiente, que não chega a ser plenamente vivida. A vida é um compromisso permanente. Na verdade, nesta ordem de ideias, Françoise Dastur, uma proeminente fenomenóloga francesa, especialista de Heidegger e da filosofia oriental, que à questão da morte tem dedicado uma grande parte das suas últimas reflexões, escreve o seguinte:

Como não ver neste frenesim de acção que move tantos dos nossos contemporâneos uma patética fuga para a frente do que inelutavelmente os espera e que eles acreditam assim obscuramente retardar? Para eles, a morte tem a face de um acontecimento a vir, do qual um número infinito de dias ainda os separa, e contra o qual devem encontrar uma forma de o evitar a todo o custo. Escondemos a morte, minimizando assim a importância dos ritos funerários que tornaram possível o luto. Queremos acreditar que a tecnologia nos permitirá fazer recuar os limites da morte, brincamos a desafiar a marcha do tempo, ou, pelo contrário, decidimos o nosso próprio fim. Porque não enfrentar a morte, assumi-la? Não sofrê-la como um fracasso ou um escândalo, mas vivê-la como a marca da nossa existência? Não para negar o medo, até mesmo o pavor, que o acompanhará sempre, mas para olhar para a morte como uma capacidade humana, de forma alguma incompatível com a alegria de existir.[5]

Viver a morte com a alegria de existir é dar um outro significado ao nosso próprio viver. A morte é uma interrogação sobre o modo como vivemos porque a viver e a morrer também se aprende. À medida que vivemos vamos morrendo para nós mesmos. Aprecio muito a forma gerundiva dos verbos: vendo, amando, vivendo, morrendo, orando, pensando, sentido… que indica um caminho progressivo a fazer-se… Quando passamos o fogo da vida a alguém, com deixamos lugar e o testemunho às novas gerações, como o estafeta que dá a vez ao outro para chegar à meta, algo se transforma em nós. Perder a vida, aqui, é, no fundo, ganhar a eternidade, o termos passado algo a alguém, aquilo que fica de nós no mundo. Creio que poderemos ver o morrer segundo duas imagens: a imagem de grão caído à terra para frutificar, que só dará fruto se morrer, ou como a lagarta que morre para dar nascimento à borboleta, ou o pai e mãe que se esquecem de si mesmos para dar o melhor de si aos filhos. Morrer para si, para dar vida, para fazer circular os dons entre muitos. E a segunda imagem poderia ser a do estafeta, que dá passagem a outro, que transmite o fogo e o ânimo, a experiência da vida, que dá lugar às novas gerações para que nasçam e despertem para o mundo. A vida é este trânsito, este intermédio entre o princípio e o fim que não conhecemos, entre um começo do qual não nos lembramos nem somos a origem absoluta, e uma eternidade da qual nada ou pouco sabemos. É este o grande mistério da vida! Aprender a desprender-se, a desagarrar-se das coisas, não como resignação, mas como aceitação de uma alegria de ter sido, de ter existido, de ter vivido com e para outrem, para sabermos entrar numa outra dimensão da vida. É aquilo que Virgílio Ferreira afirma ser a nossa humana condição finita de se «ser só com outrem».

Aprender a abandonar-se a si mesmo, um abandono serenado ao longo da vida, pacificado e confiante, crente ou espiritual, pode ser precioso para afrontarmos o momento da morte, a nossa e a dos outros, para o próprio luto daqueles ou daquelas que amamos. Morrer é um abalo tremendo, mas morrer sozinho, abandonado mais tremendo será. Morrer em paz é morrer na presença de alguém que receba o nosso suspiro, de não nos sentirmos abandonados. A presença de alguém junto de nós salva-nos do desespero da hora…e isso que faz de nos humanos, mais humanos ainda. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?», era a interrogação de ontem do próprio Cristo, que sentiu o abandono de todos na hora mais difícil da sua existência. Mas esse grito é também um grito de confiança fundamental, de um abandonar-se ao acontecimento: «Em ti me entrego».

Dessa morte nasce a nossa vida, a passagem do testemunho, do fogo que dá calor e luz, que consome e devora, destrói e purifica. O fogo que Jesus veio trazer e lançar na terra é uma paixão de amor incondicional. Afinal, quem pode conhecer o segredo do fogo senão quem se deixa consumir por ele? Assim, as palavras de Jesus sobre o fogo que ele veio trazer lembram ao cristianismo cansado e às igrejas envelhecidas que o cristianismo é vida e fogo, paixão e desejo, aventura e beleza. O patriarca de Constantinopla Atenágoras escreveu algures que «o cristianismo é a vida em Cristo. E Cristo nunca se detém na negação, na recusa. Somos nós que carregamos o homem com tantos fardos! Jesus nunca diz: ‘Não faças isso, não deves fazer’. O cristianismo não é feito de proibições: é vida, fogo, criação, iluminação».

Seguindo a imagem da fecundidade do grão de semente lançado à terra, que morre para que nasça a árvore ou planta, a vida e a morte imiscuem-se desde sempre uma na outra, frutificam-se mutuamente. Não esqueço nunca o relato de um médico que acompanhou uma jovem mãe em estado vegetativo que viria a dar à luz o seu filho. Dizia ele: «O seu ventre/corpo foi uma autêntica incubadora maternal […]. Através do seu corpo deu vida a um novo ser”, mesmo estando morte deu a vida a alguém. Este é o momento de agradecimento também, sobretudo os seus familiares, pela vida que ela gerou e pelo rasto de humanidade que ela deixou atrás de si. É este o milagre da nossa existência, o de dar vida, o de contribuirmos para a qualidade humana da morte, porque na forma como se morre também há muita desigualdade e desumanidade.

A vida nasce da morte (cultos gregos, mistérios de Elêusis, orfismo, religiosidade iniciática). Se o grão de trigo não morrer, não dá fruto. Mas se morrer, dá muito fruto (cf. João 12, 24). Quando o grão de trigo cai por terra e morre, permanece só, não produz vida, não gera nada. Mas se morre e dá fruto, então dá algo ao mundo. Quando entendemos a vida por esta prisma, mesmo morrendo, se deixamos algo a alguém, se fomos para alguém, se os nossos gestos e palavras salvaram alguém, em algum momento da nossa vida, então a morte de alguém não será uma tragédia, mas uma transformação cósmica e humana.

A sombra dos que partiram vivem em nós, a sua sombra habita-nos, pois vivemos sempre em comunhão dos vivos e dos mortos, querendo ou não. Sejam más ou boas as recordações de alguém, a sua ausência faz-se sempre presença em algum momento sensível da nossa vida. É o mistério da presença de uma ausência. A presença em ausência é talvez o enigma dos enigmas do ser e do mundo. O rasto, o vestígio de alguém que permanece mesmo após a dissolução do corpo. É agora no teu olhar que eu existo, que continuamos a existir para além da morte, e por isso estamos vivos não só até à morte mas também na morte. Porque razão continuamos a fazer a memória depois de dois mil anos de Cristo? Ele vive na memória da comunidade dos crentes, e fazemos memória quando alguém ou algo foi significativo para nós ou para a humanidade.  E isso é algo divino, de sublime, que abarca todos os humanos. Na lógica do Deus de Jesus Cristo, ninguém fica para trás, ninguém é abandonado, mesmo quando nos excluímos uns aos outros.

James Joyce, num dos seus grandes livros, Os Mortos, escrevia: «Um a um, todos se iam tornando sombra». A sua prosa dá vida à temática da mortalidade humana, numa epifania, como lhe chamava o autor, que deambula entre a vida, a morte, os que foram, os que estão e os que hão-de ir, sobre o amor e as suas múltiplas formas. É um jantar de fim de ano, de família, amigos e mesa farta, um prenúncio que nos trazem os mortos que ficam connosco e vivem em nós mesmo quando são só sombras, mesmo quando «Um por um, todos eles se iam tornando sombra.» E quem não desejaria morrer contemplando a vida como a personagem Gabriel d’Os Mortos, cujo livro termina assim: «A sua alma desfalecia languidamente enquanto ele ouvia a neve a cair suavemente em todo o universo e cair suavemente, como a descida do seu fim derradeiro, sobre todos os vivos e os mortos».[6] Não será precisamente a vida um grande teatro de sombras que manifesta a ténue luz que nelas se esconde? «Todos aqueles que nós amamos, detestamos, conhecemos ou simplesmente encontramos falam através da nossa voz» (François-George Maugarlone). Pois estamos ligados uns aos outros pela trama da nossa comum humanidade e por isso sentimo-nos a pensar e pensamo-nos a sentir empaticamente uns aos outros, não obstante a singularidade ou maneira própria de sentir e de pensar inerente a cada humano.

Mas quem não desejaria afastar o cálice da morte, se fosse possível? Mais do que viver, é saber como vivemos e para quem vivemos. A angústia da morte, este momento de luto, não é incompatível com a alegria de viver. Uma morte serena, pacificada, é a morte de alguém que aprendeu a viver assim, porque aprendemos a morrer, ou como diria alguém, viver é aprender a morrer, a ter uma boa morte. E tem boa morte quem a seu lado vive em paz, pacificado. Não era este o grande desejo dos antigos, que na hora da morte, pediam sempre que a melhor memória que deles poderiam fazer, é que todos vivessem em paz? A morte de alguém implica-nos profundamente, pois envolve uma comunhão, uma comunidade que busca perpetuar uma vida que aprendeu a morrer bem e pacificado.

Invés de resistirmos à morte, ou à angústia de morte, a angústia da perda de alguém, talvez deixando-a ser aquilo que ela é, como parte da vida, encontremos a alegria de uma vida que foi o tempo que teve de ser. Encontrar a alegria, o sorriso de alguém no seu tempo de vida. A angústia chega quando queremos controlar e possuir o que nos escapa, como se fossemos senhores de algo que não somos. Não esqueço o que recentemente uma avó me confidenciou. Dizia ela: «Sabe estes dias o meu neto perguntou-me: Oh avó, quem sabe se não terá sido a tua fé em Deus a força que te ajudou a superar a doença?» Isto para dizer que ela sempre sentiu ao longo de toda a sua vida que a sua fé a ajudou a mover montanhas, a superar as dificuldades de cada momento…

Procuramos a todo o custo mascarar a proximidade da morte à medida que os anos passam por nós. Só nos lembramos da sua presença quando alguém de entre nós morre. E hoje há muitas formas de afastar a morte do nosso horizonte. Mas não será ela o que ainda nos torna humanos perante tanta proposta de nos querer tornar deuses imortais? As promessas de eterna juventude, a marginalização dos mais velhos, a valorização da juventude em detrimento da terceira idade, como se fossem objectos sem utilidade, quando eles são a reserva e o tesouro de humanidade que nos enraíza na verdade vida. Muitas são as promessas de imortalidade: a farmacopeia, a cirurgia cosmética e a construção do corpo… Mas o corpo tem os seus limites… E a questão que se coloca: se dedicamos tanto ao cuidado ao corpo, tanta saúde com o corpo, e o espírito como está? Como estamos preparados para receber este acontecimento último da nossa vida? «Vigiai e estai preparados, pois não sabeis nem o dia nem a hora». O tempo passa velozmente por nós, demasiado rápido, para perdermos um único minuto em futilidades, guerras ou desavenças inúteis.

Muitas serão as respostas para a questão da morte: a resposta mitológica da imortalidade da alma (o poeta), a resposta religiosa de um outro mundo ou do além (o padre), a resposta científica da conservação da vida ou da clonagem (o médico) ou os desportos radicais como fuga à confrontação com os limites da existência (o desportista). Tudo modos de manter a morte à distância ou de superarmos a angústia que ela provoca em nós. Nenhuma destas hipóteses foi bem-sucedida para fazer a angústia no ser humano, a angústia que ele sente na sua própria aniquilação, ele teve de recorrer a vários estratagemas para tentar neutralizar ou ocultar a morte. Tudo sentimentos de omnipotência que não são senão ilusões, como se pudéssemos atravessar a própria vida sem nos confrontamos com esta pedra de escândalo que é a morte, a nossa e a dos outros, que nos faz cair e tropeçar quando e onde menos se espera. De tropeçar num vazio irrespirável da sua ausência, de amigos e conhecidos ou familiares que vão desaparecendo da nossa paisagem.

Como afrontar então a morte, o morrer de alguém?  Não há outro caminho se não o de a transformarmos a partir da vida, a partir do grão ou da semente que deixamos cair em vida, e de a fazermos frutificar enquanto vivemos. O modo como vivemos diz certamente o modo como morreremos, o modo como assumimos a nossa própria morte. Perder a vida não é necessariamente o fim último, pois quem perdeu a sua dando-se aos outros, entregando-se de corpo e alma a uma causa, certamente que está mais preparado para esse último suspiro. Deixar rasto, um rasto, é deixar memória. Este deixar algo, uma geração, é já dar fruto, porque só dá fruto quem ama, quem atravessa a existência com o fogo da bondade. Não é tanto a sua ‘falta’ que falta, é o desmentido de que tu não morres. E quem o poderá desmentir ou garantir? A memória inapagável do que fomos e somos uns para os outros…A memória crente é essa memória vital, a coesão comunitária das gerações, dos que já partiram, dos que permanecem ainda e dos vindouros. É isso que celebramos, a coesão do mundo natural e do mundo humano, em Deus mesmo.

Só a bondade salvará o mundo porque é a forma mais humana da beleza que nos une e faz de nós mais humanos. É o desmentido de que tu não morres, a permanência de um rasto, de um gesto, de um som, de um olhar, de um abraço iluminadores e que salva. E o rosto de uma mãe é tudo isso, a beleza maternal de Deus que todos acolhe, abrasa e convida para o banquete último da Vida. Quando um ente querido nos deixa, sobretudo uma mãe, com a qual estamos sempre ligados por um cordão umbilical, como na primeira manhã em que viemos ao mundo, é uma parte de nós que se vai também. Mais do que o sangue que flui nas nossas veias e que alimenta o nosso corpo e o nosso espírito, é o elo afectivo, a presença de quem sempre esteve, está e estará lá, como se fosse uma raiz que vem de longe, que nos segura, anima e lança novamente para o mundo. Podemos partir pelo mundo fora, mas esse cordão fundo e enraizado acompanha-nos sempre, e sem o qual facilmente nos perderíamos. Esse cordão é uma bússola para navegamos no alto mar da vida. Voltamos e regressamos sempre para os braços da nossa mãe que nos lança sempre para o mundo.

Segundo a visão cristã da morte, esta não é o último bastião da vida. Não é somente passagem da curva da vida. É uma transformação do nosso ser no ser de Cristo ou no silêncio de Deus que nos suporta e envolve. Há qualquer coisa que mesmo na morte ou no morrer transpõe os limites da nossa finitude. É uma Páscoa, no sentido de passagem, mas também de transformação do corpo biológico em corpo glorificado. Um corpo no horizonte e na luz divina. Um novo modo de ser. E esse novo modo de ser é uma nova memória, um modo de viver na memória dos outros, que o corpo de Cristo nos dá. Atravessamos a própria morte a partir de uma mão que nos tira da angústia, do desconsolo irreparável de uma perda, do desânimo de não voltarmos a privar com a pessoa que amamos e agora perdemos. Jesus dizia aos seus discípulos: Isto é o meu corpo. Fazei isto em memória de mim. E que memória afectiva podemos fazer de quem nos deixou? Que memória ética de nós permanecerá no mundo?

Em tempos esteve em exibição na torre dos Clérigos, no Porto, uma exposição com os desenhos do nosso arquitecto agnóstico Siza Vieira, intitulada a Paixão de Cristo, que é também a nossa própria paixão. E ao ver estes desenhos reparei que em todas cenas ou quadros a mãe de Jesus estava sempre lá, presente e solidária, silenciosa e discreta, neste momento tão dramático da vida de Jesus. Uma mãe que toca o filho na cabeça, uma mãe que envolve o filho no seu colo, uma mãe que beija a sua cabeça ferida. Stabat Mater, estava a mãe plena dores pela sorte do seu Filho. Uma mãe impotente diante da morte e da violência infligida a seu próprio filho, mas uma mãe que está lá, que não abandona o filho, que lhe dá o luto merecido, o luto humano e de Deus. Todas as mães cantam no seu íntimo o Stabat Mater de Pergolesi ou de Karl Jenkins, mesmo sem conhecer estas composições, porque o grito de Cristo é também o nosso grito na mais profunda obscuridade e desconsolo. Por isso a sua figura é tão universal, pois nele ecoa e é assumida toda a nossa condição de seres finitos, mas também a sublime transcendência da nossa transfiguração.

Na dita exposição, despertou-me a curiosidade a seguinte frase de Siza Vieira: «Não sei o que me levou a desenhá-las (algumas cenas da Paixão de Cristo). Talvez o isolamento? Mas na vida de Cristo houve tudo menos isolamento. Nem mesmo no Monte das Oliveiras. Ou no Gólgota…». Estar ao lado de alguém, sentir uma presença ao nosso lado, alguém que nos acompanha até ao fim, na vida e na morte, na festa e na doença, é o começo da salvação, é a promessa de que venha o que vier permaneceremos juntos. Só amor incondicional resiste à separação. Estar aí sem mais nada, apenas sentir a vibração e o timbre silencioso de uma presença amorosa no leito, de uma luz terna e suave que nos apazigua o ser.

Mas agora a sua presença é uma outra presença, um outro modo de estar presente entre nós. A ausência é ainda um modo de estar presente. As nossas vivências conjuntas, alegrias e tristezas tornam presente a ausência física. Só avança quem ama, quem perdoa. O ressentimento bloqueia tudo. E os minutos são muito breves porque ninguém pode ainda comprar a vida, que é um tesouro raro ou raríssimo. Só vivemos uma vez. E vivemo-lo sempre com os outros, quer dizer, no interlaço de vidas comuns, diversas e partilhadas! Descubramos o essencial para vivemos com serenidade os momentos últimos. Encontremos a alegria de viver e homenagear os outros enquanto vivos, o que nos são próximos e também os distantes. Levantemos novas nuvens, novos céus e nova terra, reconciliando o que porventura está rasurado. Descubramos a luz na escuridão para atravessarmos os turbilhões do espírito perturbado. Levantemos um hino à fraternidade, ao amor de irmãos que é o que nos traz sossego ao fim da noite. Passemos o fogo da palavra que nos retira do lodo ou do fundo do abismo, o fogo do gesto que salva, o fogo do silêncio que age discretamente…

Que na hora de desconsolo e de lágrima, do teu e nosso mozartiano Requiem Aethernam, caro leitor/a, desça um grito de amor, um grito de desejo, um grito de êxtase da potência risível do Espírito. Este é o tempo do abraço abrasador, de abraçar os que perderam a sua mãe. Santo Agostinho acabava o seu poema, por ocasião da morte da sua mãe Mónica, dizendo: «Ficou-me um profundo afecto por ti». Que isso permaneça como sustento e suporte para as horas obscuras de uma perda. Não muito diferente diz a letra do poeta-compositor e músico Pedro Abrunhosa, juntamente com a fadista Sara Correia, que muitos conhecerão, e que ela possa serenar o nosso espírito nesta hora joanina ou «noite escura» do místico São João da Cruz, que é também e sempre a nossa quando ela chegar:

Que o amor te salve nesta noite escura,
E que a luz te abrace na hora marcada,
Amor que se acende na manhã mais dura,
Quem há-de chorar quando a voz se apaga?

Ainda há fogo dentro!
Ainda há frutos sem veneno!
Ainda há luz na estrada!
Podes subir à porta do templo,
Que o amor nos salve..
E há uma luz que chama,
Outra luz que cala,
E uma luz que é nossa.

Que a manhã levante a rosa dos ventos
E um cerco apertado à palavra guerra,
Ninguém nesta terra é dono do tempo,
Não é deste tempo o chão que te espera.

Ainda há fogo dentro!
Ainda há frutos sem veneno!
Ainda há luz na estrada!
Podes subir à porta do templo,
Que o amor nos salve..
E há uma luz que chama,
Outra luz que cala,
E uma luz que é nossa.

O princípio do mundo começou agora,
A semente será fruto pela vida fora.
Esta porta aberta nunca foi selada
Pra deixar entrar a última hora.

Ainda há fogo dentro!
Ainda há frutos sem veneno!
Ainda há luz na estrada!
Podes subir à porta do templo,
Que o amor nos salve..
E há uma luz que chama,
Outra luz que cala,
E uma luz que é nossa.

[1] Conferir a belíssima música Mundo, do álbum De Sombra A Sombra, da artista Milhanas.
[2] Hölderlin, Hinos Tardios, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, p. 213.
[3] Albert Einstein, Como Vejo a Ciência, a Religião e o Mundo, Relógio d’Água, Lisboa, 2005, pp. 297, 300.
[4] Sigmund Freud, Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade [1905], Relógio d’Água, Lisboa, 2009.
[5] Françoise Dastur, Comment affronter la mort, Bayard, Paris, 2005.
[6] James Joyce, Os Mortos, Relógio d’Água, Lisboa, 2022, p. 84.

João Paulo Costa é presbítero católico e investigador em filosofia no CECH da Universidade de Coimbra. Autor de Indícios – à escuta dos traços de Deus (UCP editora, 2016) e de À Sombra do Invisível – fragmentos de um crer sapiencial (Documenta/Sistema Solar, 2020).

Fonte: https://setemargens.com/visoes-da-vida-e-da-morte/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete%2BMargens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

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