domingo, 28 de junho de 2009

Caleidoscópios e corações

Rubem Alves*
Caleidoscópios são um dos meus brinquedos favoritos. Desde menino eu me assombrava com as suas mágicas simetrias coloridas que eu via quando colocava o olho no buraquinho. Criança, sem entender como a magia era feita, eu fazia caleidoscópios com canudos de bambu. Aprendi física ótica com as mãos e os olhos sem saber o que estava aprendendo. Quando de fato estudei física ótica no ginásio o professor não nos mostrou nem espelhos e nem caleidoscópios. Ao invés disso fez uma série de desenhos a giz no quadro negro.
À frente da mesa onde trabalho, numa prateleira cheia de brinquedos, está um caleidoscópio sofisticado que comprei numa loja especializada. As pequenas peças que os espelhos transformam em simetrias coloridas estão dentro de uma câmara de vidro fechada, cheia de óleo. Assim, quando eu giro o tubo as peças não caem bruscamente, como nos caleidoscópios rudimentares. Elas flutuam suavemente no óleo numa dança vagarosa.
Segundo informação que obtive na internet o caleidoscópio foi inventado no início do século XIX, na Inglaterra, por um homem chamado David Brewster. Nada sei sobre a sua vida, mas imagino que não deveria ser um homem muito ocupado. Os homens de negócio e semelhantes que vivem com sua atenção concentrada em coisas práticas não têm nem tempo e nem espírito para imaginar coisas assim, totalmente inúteis, maravilhosamente inúteis. Para isso é preciso ócio e vagabundagem.
O seu nome foi feito com três palavras gregas, “kalos”, que quer dizer “belo”, “eidos” que quer dizer “imagem” e “scopéo”, que quer dizer “vejo”. “Vejo belas imagens”. Quem olha pelo buraco de um caleidoscópio vê belas imagens...
As possibilidades de imagens são infinitas. Basta girar o tubo para vê-las aparecendo e sumindo, sem cessar. No entanto, essa variedade infinita de padrões simétricos é produzida por um número pequeno de peças que, em si mesmas, não têm beleza alguma. A beleza é produzida pelos reflexos nos espelhos.
Falta, nas aparições que vejo, as qualidades da materialidade grosseira que continua a ter “ser” mesmo no escuro. O que vejo não é uma “coisa”; é uma “aparição” de luz. A “aparição” não é, não tem substância, é um jogo de luz. No entanto, a despeito de faltar-lhe “ser”, ela me produz espanto. O que não tem substância e que, portanto, não é, tem poder. Se não tivesse poder não me espantaria. Sou movido por coisas que não existem. Mas e as coisas mesmas que estão por detrás da aparição? O que são elas? São coisinhas, caquinhos... Se eu as visse não ficaria espantado. No entanto, essas coisas bobas, coisas que têm realidade, que não mudam, que são sempre as mesmas, quando pegas pela magia dos espelhos, aparecem como infinitas e imprevisíveis simetrias de cores. Qual é a aparição verdadeira? Esse pergunta não pode ser feita de aparições. Ao perguntar sobre a sua verdade estou em busca da uma coisa sólida, que existe. Mas as aparições não são sólidas. As aparições dos caleidoscópios são belas. A infinita variedade das simetrias coloridas depende do movimento. Se o caleidoscópio ficar imóvel a aparição ficará imóvel e dará a ilusão de um vitral de catedral sólido.
Nos reflexos do caleidoscópio descubro que as coisas são feitas de luz. Mestre da ontologia da luz era Monet que passava o dia inteiro pintando a mesma coisa, podia ser um monte de feno ou a fachada da Catedral de Rouen. Por que ele fazia isso? Porque ele não queria pintar a coisa fixa e terminada. Ele queria pintar os movimentos da luz.
Examino a câmara de vidro fechada onde estão as peças do meu caleidoscópio. Vejo uma conchinha de dois centímetros, algumas poucas contas coloridas, duas ou três pedrinhas, uma argolinha dourada, um botão. Mas não são essas coisas insignificantes que me causam espanto. São as aparições, as simetrias coloridas, os jogos de luz, coisas que não são objetos como as contas, as pedrinhas e as argolinhas. Falta-lhes existência. São só aparições. E são essas aparições destituídas de ser que nos trazem prazer estético. É com esse número limitado de objetos que o caleidoscópio produz simetrias infinitas! Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?, perguntou Valèry.
Cada uma delas existe apenas num momento fugaz, enquanto a luz se demora. Logo ela deixará de ser e outra aparecerá, igualmente espantosa. Os seres da luz são delicados. Talvez nem seja apropriado aplicar a eles o verbo “ser”. Elas não são; estão sendo. A todo momento, as modulações da luz fazem com que sejam outras. Talvez que as “descrições” a que se referia o bruxo D. Juan participem da mesma ontologia que as telas de Monet. É necessário “parar o mundo”, parar a imagem, para que um outro mundo e uma outra imagem apareçam.
Veio-me uma suspeita: o rosto que amamos, o que será? As pedrinhas? Mas as pedrinhas não podem ser amadas. Falta-lhes beleza. Ou é uma “aparição” nesse caleidoscópio que é o coração? O coração é um caleidoscópio. Ele tem o poder de transformar o banal em algo maravilhoso. Mas “aparições”, no caleidoscópio, não têm ser. Apaixonamo-nos por “aparições”,reflexos coloridos de luz? Quando a “aparição” muda o amor se vai?
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1640498&area=2220&authent=BDDBFC4F9BFB82BDF9FC6D9BD9829F

Nenhum comentário:

Postar um comentário