Marcelo Allevato*
O recente desaparecimento do voo AF 447 no trajeto Rio–Paris, envolto em mistério, suscitou diversas hipóteses envolvendo circunstâncias meteorológicas, falhas humanas, defeitos mecânicos e, por fim, a mais curiosa e intrigante de todas: o aparato eletrônico do moderníssimo Airbus A330 teria interpretado de forma equivocada as variações de velocidade e posição da aeronave induzidas provavelmente por turbulência, e iniciado procedimentos automáticos – a princípio corretivos – independentemente da vontade dos pilotos, que teriam causado o mergulho fatal. Sem entrar no mérito da verossimilhança da hipótese, a discussão traz à baila questões instigantes: seria a evolução tecnológica em certas circunstâncias nociva? As reações humanas em situações extremas seriam mais adequadas?
É possível adiantar que não há respostas definitivas para essas questões; e acrescentar que efetivamente as máquinas são incapazes de sentir medo. Por isso, lhes falta capacidade de reagir a situações de perigo com a mesma variedade de possibilidades de que somos capazes. Na realidade, diante de situações de perigo, a decisão a ser tomada é, a princípio, escolher em frações de segundo entre fugir ou lutar. Essa decisão aparentemente simples é tomada de acordo com a análise de diversas informações provenientes dos órgãos dos sentidos que monitoram o ambiente, as quais são enviadas ao cérebro, onde o processamento desse conteúdo envolve não só o recurso a habilidades adquiridas, no caso dos pilotos por meio da aprendizagem e do treinamento, como também a evocação automática de memórias relativas a outras situações semelhantes vividas ou observadas, que dependerá da experiência de cada um. Todo esse processamento é velocíssimo, e feito de forma quase inteiramente não verbal.
Um terceiro componente fundamental na tomada de decisões nessas situações é a afetividade, e o cortejo de sensações físicas que acompanham a sensação de perigo. Acredita-se que a tomada da decisão mais adequada em circunstâncias extremas dependa do funcionamento harmônico desses três componentes, e a relevância do afeto e das sensações físicas na tomada de decisões adequadas em condições experimentais parece desmentir a crença de que o melhor é decidir de cabeça fria: pacientes com lesões neurológicas que os tornem incapazes de vivenciar a angústia diante de situações adversas geralmente tomam decisões inadequadas e por vezes desastrosas.
Esse trágico acidente, portanto, gera especulações que acrescentam a seu mistério contornos de fábula: caso a hipótese acima seja verdadeira, a decisão fria, porque prévia e inflexivelmente programada da máquina diante de uma situação complexa e velozmente mutável, teria sido desastrosa. Certo é que o aparelho não seria capaz de angustiar-se diante da iminência da morte.
É teoricamente provável que os pilotos, humanos, falíveis e angustiados diante do perigo, reagissem de forma mais adequada, com suas habilidades adquiridas potencializadas pelo próprio medo, já que dificilmente profissionais tão habilitados e experientes ficariam amedrontados ao ponto da imobilidade diante do perigo. No entanto, reféns da decisão da máquina, podem ter assistido ao desfecho de seu drama sem possibilidade de reação. Provavelmente jamais teremos uma resposta definitiva quanto às causas do acidente, tampouco sobre os limites da tecnologia e das habilidades humanas.
Jornal do Brasil, Sexta-feira, 05 de Junho de 2009 - 00:00
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/06/05/temadodia/sobre_homens_e_maquinas.asp
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