domingo, 14 de junho de 2009

Povos felizes não precisam de heróis

JAIME PINSKY*

Dizem que povos felizes não necessitam de heróis. Seríamos, pois, os brasileiros, duplamente infelizes: estamos permanentemente em busca deles, mas nunca os encontramos, pelo menos com a dimensão almejada.
Um dos casos mais significativos é o de Tancredo Neves, com sua agonia partilhada por toda a nação. Comparado pela mídia a santos que sacrificavam a vida pelo bem de todos, era visto como o mártir da redemocratização, numa clara referência a Tiradentes, o protomártir da Independência. A não ser os mais jovens, todos ainda lembram que o país parou quando de seu enterro, as pessoas choravam na rua, seu papel para o Brasil era comparado ao de De Gaule para a França, Adenauer para a Alemanha e Ben Gurion para Israel, e até ao de Lincoln, para os Estados Unidos. Hoje, ninguém mais o evoca, sua prática política de transição sem mudanças tem sido exercida com maquiavélica competência por muitos de nossos líderes — Fernando Henrique e Lula, por exemplo — e é provável que seu nome não ajude a eleger sequer o prefeito de São João del Rey.
Por vezes, elegemos nossos heróis salvadores de forma açodada (não foi o nosso país que escolheu, livremente, para presidente, um suposto caçador de marajás, chamado Fernando Collor?). Outras vezes, ao procurarmos o herói perfeito e imaculado — que, por definição, não existe —, desapontamo-nos com a dimensão humana que ele acaba por revelar e passamos a rejeitá-los por inteiro. Isso é muito visível com nossos heróis esportivos: nem Pelé, nossa maior glória no esporte que mais toca nossas almas e mentes, escapou do descrédito. Mesmo sendo o brasileiro mais famoso do mundo em qualquer época e de qualquer área, sofre por aqui o desgaste de ser falível, gente, enfim. Parece que isso é pouco para nossas necessidades.
Deixando de lado a risível tentativa de uma emissora de TV que quer transformar um perdedor incorrigível num herói das pistas (fica a impressão de que nem todo o dinheiro que Rubinho ganha compensa a evidência, renovada a cada corrida, de que ele não nasceu para vencer), por vezes fazemos escolhas mais felizes. Guga, um garotão irreverente, profundamente identificado com a autoimagem do brasileiro, superou o elitismo do seu esporte e nos tornou, a todos, fãs de aces e voleios, telespectadores nervosos que sofrem a cada set não fechado. E houve Ayrton Senna. Se nossas seleções de futebol representam a pátria de chuteiras, Ayrton Senna era a pátria sobre rodas. Ele era o homem que compensava nossos fracassos como nação, nos redimia de nossas derrotas como indivíduos e, exibindo a bandeira nacional a cada corrida vencedora, “mostrava o valor do brasileiro”. Morreu jovem, correndo, lutando por todos (pelo menos no nosso imaginário). Tivesse vivido um pouco mais, sobrevivido à glória, seria engolido pelo cotidiano, consumido e descartado por falhas reais ou imaginárias.
Nação curiosamente maníaco-depressiva, criamos heróis, jogamos neles todas as nossas esperanças, sentimo-nos vencedores e poderosos juntamente com eles e, no minuto seguinte, os destruímos, e com eles nos destruímos. Bipolares sociais, oscilamos da euforia à depressão, com raros momentos de estabilidade e equilíbrio. E, o mais grave, procuramos sempre a solução ou a culpa vinda de fora, magicamente. A própria maneira de explicarmos nossa história comprova isso. Durante muitos anos, dizem muitos de nossos livros, os brasileiros nada podiam fazer porque éramos colônia de Portugal. Depois, durante a monarquia, o autoritarismo do Império impediu que fôssemos responsáveis por nossos próprios destinos. Em seguida, fomos objeto do imperialismo britânico, então dos americanos, apoiados pelo FMI. E agora, que passamos de devedores a credores do banco, elegemos um novo vilão de plantão, os chineses, que roubam nossa matéria-prima e nos impingem produtos industrializados de maior valor agregado.
Como adolescentes irresponsáveis, somos “demenor”, inimputáveis. Não respondemos pelos nossos atos: a corrupção em que chafurdamos, a violência que nos cerca, a marginalização social, econômica e cultural a que relegamos a maioria dos assim chamados concidadãos.
Votamos ou com a sensação do “não adianta mesmo” ou com a ilusão do “este vai redimir o povo”. Depois do “ato cívico” voltamos bovinamente às nossas poltronas (de nossas mansões, ou de nossos barracos, dá no mesmo) e, enquanto nos envolvemos com as novelas televisivas, aguardamos o que “eles” vão fazer, ratificando, pela omissão, o divórcio entre sociedade e Estado, que é uma das marcas registradas de nossa história. E continuamos esperando o Messias.
*Historiador, doutor pela USP, professor titular da Unicamp e autor do livro O Brasil tem futuro?, entre vários outros www.jaimepinsky.com.br
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/14/06/2009

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