João Gilberto Noll*
Entrevista
O escritor João Gilberto Noll abre hoje o ciclo de conversas com os 20 finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, cujos vencedores serão conhecidos no dia 3 de agosto, cada um faturando R$ 200 mil. São seis eventos gratuitos, abertos ao público, incluindo uma happy hour com os autores. Noll, que concorre com Acenos e Afagos (Record), falou com o Estado.
Que vantagens traz um encontro com seu público?
Não é que os meus livros sejam exatamente oralizantes. Pois detesto a gíria excessiva, o naturalismo da linguagem. Mas sem dúvida eles podem ser, digamos, cantados para um público. Tive formação de cantor. Na infância cantava em casamentos, festas do colégio e até em um enterro, pouco antes de fecharem o esquife. Além disso, sou um inveterado leitor de poesia - claro, amante do ritmo e da sonoridade da palavra. Esses fatores musicais e poéticos fazem a minha prosa. Por falar nisso, invejo enormemente a música, uma vez que ela não materializa ideias, é fundamentalmente um aparato físico. Tanto é assim que a música do século 19 chamada descritiva é ao meu ver intolerável. Já a ficção é bem mais intelectiva, seguidora da História. Minha prosa é pulsional, seguidora do inconsciente. E ler esses textos diante do possível leitor é como se eu desse uma voz física para meu protagonista. Uma voz que de mim sai em tom de canto gregoriano, com poucas modulações, para não distrair os presentes com dramatismos dispensáveis.
Ao criar, você acredita que sente o mesmo choque de seus leitores?
Sou um autor extremamente compulsivo ao escrever. É como se eu trabalhasse o tema muito mais com a pele das palavras do que com o enredo propriamente dito. Algumas frases estão muito longas, para justamente haver uma isonomia entre a forma e o mundo emergencial de hoje, um mundo que requer urgência. Então o ponto final da frase é adiado, para que tudo possa ser dito com grande rapidez, em constantes simultaneísmos. Quando escrevo me detenho primeiramente no aspecto estrutural da coisa. É a engenharia do romance que me ocupa mais. E esse estágio precisa ser mais sereno, distanciado. Assim, não tenho o choque a que você se refere, possivelmente vivido pelo leitor. Afinal, já não sou mais criança. Devo ter aí mais uma vivência de engenharia do que de pathos. Quanto à boa parte do enredo, o meu inconsciente se encarrega, até o resultado receber o tratamento de um certo mestre que eu hospedo.
Você disse, certa vez, que o escritor deveria "pegar o leitor pelo cangote e colocá-lo diante de seus desejos, de sua materialidade". Literatura seria, então, desnudamento?
Para mim, é. Talvez a literatura possa ser a enunciação daquilo que não se pode apontar no mundo social. Sei que há outras maneiras de se encarar a literatura, mais elucidativas do mundo social e histórico. Eu já tendo mais para o drama do indivíduo. É como se eu fizesse poesia lírica no romance. Falo desse sujeito olvidado das grandes cidades, sem qualificação para o trabalho, vivendo um pouco como o vagabundo de Chaplin pelas ruas, sempre com o rabo preso diante da autoridade policial. Hoje essa figura do vagabundo vai se esmaecendo. Esse protagonista, aliás, que é sempre o mesmo nos meus livros, agora está mais centrado. No último romance, Acenos e Afagos, ele tem esposa e filho, vive numa casa de classe média. Mas vive, fora do lar, num mundo paralelo inebriante. Esses protagonistas são o mesmo no território da alma, não nas circunstâncias de profissão, contexto geográfico, etc. Não dou continuidade, não, de um livro para outro.
Um escritor tem obrigação moral com seus personagens ou com leitores?
Acho que o primeiro item desse olhar moral reside na fidelidade a si mesmo enquanto autor. Garanto que esse protagonista sem nome habita em mim e a ameaça de seu apagamento de fato me estremece. Eu não tenho muito mais além desse cara. Sinto que há uma relação entre os dois como se de conteúdo medieval, para lá de austera, despojada. E é com esse nada que eu quero continuar escrevendo. Sim, falo de um homem à flor do nada.
Palavras fazem mover as coisas?
As palavras ordenam, dão sentido. Qualquer ato do conhecimento usa o verbo. Mas a palavra pode ser também vertigem. E o retorno à clareza da manhã. Acho que quero fazer da palavra um lançar expressionista como o da tinta na tela. Qual um Iberê Camargo com suas cores arrancadas do peito. Primeiro a projeção, depois vamos ver no que deu. Eu escrevo com as palavras e não propriamente com ideias. Sendo assim, os vocábulos têm um sentido desbravador, são eles que abrem caminho para mais.
Reportagem de UBIRATAN BRASIL para o Estadãohttp://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090630/not_imp395292,0.php 30/06/2009
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