terça-feira, 9 de junho de 2009

A pedagogia do crime

MOACYR SCLIAR*

Existem textos que são importantes para a compreensão do país em que vivemos. A carta de Pero Vaz de Caminha. Os Sertões, de Euclides da Cunha. A carta-testamento, de Getúlio Vargas. A estes deveríamos acrescentar um diálogo que, apesar de tosco, é muito significativo do clima social e emocional em que vivemos. Um vídeo apreendido pela polícia de Santa Catarina mostra o diálogo entre Rafael Borba – que tem antecedentes criminais por tráfico de drogas e homicídio, e que está sendo acusado por sequestro – e seu filho, de quatro anos, e uma sobrinha de três. A menina porta um revólver de brinquedo. O tio orienta-a a agredir, “dar tiros” e exigir dinheiro de uma boneca: “Diz pra ela: ‘Cadê meu dinheiro, boneca?’”. Em seguida, mostra como dar uma coronhada na cabeça da boneca.
Podemos pensar que este homem é maluco – um sádico, no mínimo. Mas será que é esta a imagem que ele tem de si próprio? Provavelmente não. Ali está o homem, deitado na rede, conversando com o filho e com a sobrinha, um retrato comum da vida familiar brasileira (e de outros países, mas a rede identifica o lugar). Exercita a vocação de educador, comum a pais e a tios; talvez até mais a tios, se considerarmos a importância que o termo “tio” tem para as crianças. E usa uma boneca como recurso educativo, o que, de novo, não é tão fora do comum: bonecos e bonecas são usados nos cursos de Medicina para demonstrar manobras de ressuscitação.
O que o homem ensina, contudo, a todos nós impressiona e horroriza. Simplesmente mostra como fazer um assalto, e um assalto que não exclui a violência: o recurso à coronhada é apresentado como possível, e desejável, alternativa em caso de resistência da vítima. Mas, de novo, aquilo que a nós revolta, parece normal para o improvisado mestre: está iniciando seus pequenos discípulos na profissão que pratica, tal como o fazem há milênios os profissionais. É – para ele – uma profissão igual às outras, uma profissão que, na atual conjuntura, adquiriu foros de legitimidade. “Cadê o meu dinheiro, boneca?” é o que ele pergunta, não “Cadê o teu dinheiro?”. O dinheiro está com a boneca apenas por acaso; esse dinheiro tomou um rumo errado, coisa que o assaltante, pela violência, corrigirá. Daí o revólver. Detalhe importante: essa arma certamente foi adquirida numa loja de brinquedos, num supermercado. Armas assim são usadas por milhares, por milhões de crianças, que desta maneira imitam, senão os próprios pais (muitos dos quais, mesmo não sendo assaltantes, têm armas em casa), então os filmes que são exibidos todos os dias na tevê, sem falar nos videogames. Nos filmes também não faltam frases violentas, intimidadoras. Nem coronhadas.
A cena é, portanto, um ritual de iniciação. A menina está sendo apresentada a um tipo de vida que agora faz parte de comunidades, de famílias: o sequestro da notícia resultou de uma cooperação familiar, a mulher do provável sequestrador identificando – erradamente, porque provavelmente ainda não está bem treinada para isso – a possível vítima.
É este o cenário que queremos? Se não é, temos que começar a tomar providências imediatas para isso, usando a lição que o professor do crime nos dá: precisamos falar mais com nossos filhos, precisamos transmitir-lhes afetos, precisamos mostrar-lhes que o caminho da violência não leva a nada . Bonecas, que funcionam como modelos para futuras mamães, e papais, devem ser acariciadas e beijadas. Bonecas devem ouvir historinhas encantadoras. Mesmo porque, se há pergunta que as as bonecas não sabem responder é: “Cadê o meu dinheiro?”.

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