sexta-feira, 5 de junho de 2009

O discurso do Cairo

Mauro Santayana
Pouco importa o que virá depois, porque nenhum homem, nenhum povo, tem em suas mãos as rédeas da História. A rota do homem na Eternidade é semelhante às estradas nos mapas antigos, nos quais as cidades eram marcadas sucessivamente em uma linha reta, com os dias de jornada entre uma e outra. Não podemos retificar o caminho da civilização, fazendo-o derivar para mais ao Norte ou mais ao Sul do tempo transcorrido. Só podemos nos situar no ponto em que nos encontramos, neste dia, nesta hora, neste minuto. O discurso de Obama, no Cairo, foi para este dia, esta hora, este minuto. Mas este dia é a soma dos milhões de dias passados. Em razão disso, o presidente foi lá, nas marcas da rota do mapa antigo, para explicar que somos caminhantes de inúteis e ilusórias intolerâncias.
Obama falou aos muçulmanos, na Universidade do Cairo, que segue a tradição de um dos centros de cultura mais antigos do mundo, a universidade islâmica de Al Azhar, criada no século 10. O discurso de Obama foi importante para mostrar o que tem sido a banalidade da insensatez na história dos povos, e o seu interesse político legítimo se situou no falso confronto entre o islã e a cultura judaico-cristã. Ele poderia ter sido mais claro, na contrição que nos cabe, e se ter referido às Cruzadas e à expedição de Juan de Áustria contra os otomanos, vencidos em Lepanto (1571) pelas forças aliadas da Espanha de Filipe II, da República de Veneza e do papa Pio V.
O exame da História – e nisso Obama foi preciso – mostra que os muçulmanos sempre foram muito mais tolerantes diante de outras crenças do que os cristãos. Ele se referiu à Andaluzia, sob o Califato de Córdoba, que, durante sete séculos, não conheceu perseguição contra os cristãos, nem contra os judeus. As três culturas conviveram bem, como atesta, entre outros documentos, as conversações interreligiosas (Libre del Gentil e dels três Savis, de Ramon Lull, no século 13) entre muçulmanos, cristãos e judeus, quando concluem que têm o mesmo Deus.
As palavras do presidente, não obstante as necessárias e fundadas referências históricas, são ditadas pelos desafios da atualidade. Ele foi corajoso, ao dizer que a guerra contra o Iraque não nasceu da necessidade, mas foi escolha política equivocada. Foi ainda mais firme, quando assegurou que “nenhum sistema de governo pode ou deve ser imposto sobre uma nação, por qualquer outra”. Mesmo amenizando o discurso – ao afirmar que os americanos têm relações mais fáceis com os países democráticos de modelo ocidental – trata-se de virada histórica na política externa dos Estados Unidos.
Embora cercado de todos os cuidados, Obama deixou claro que, sob seu governo, o Estado de Israel não contará com a carta branca de Washington para fazer o que desejar. Defendeu, de forma destacada, o direito do povo palestino à autodeterminação, dentro de fronteiras estatais seguras. Condenou, sem qualquer concessão, a existência dos assentamentos judaicos nos territórios atribuídos aos palestinos em 1948, bem como outras formas de violência sobre as populações da Cisjordânia e de Gaza. Não poderia deixar de reclamar também o reconhecimento do Estado de Israel pelos palestinos, mas não conseguiu ocultar a sua simpatia pelos menos poderosos, massacrados periodicamente pelo Exército de Israel.
Outro ponto importante foi o reconhecimento de que Washington derrubara um governo eleito democraticamente no Irã. Ele se referia ao golpe patrocinado pela CIA e pelos serviços britânicos, em 1953, contra Mohammed Mossadegh, que nacionalizara o petróleo e obrigara o xá Reza Pahlevi, aliado das empresas estrangeiras, a buscar o exílio.
Ontem mesmo, a direita norte-americana, acampada no Partido Republicano, insurgiu-se violentamente contra o discurso do presidente. O deputado republicano John Boehner, líder da minoria, disse que o pronunciamento do presidente revelava “fraqueza” dos Estados Unidos. Ao contrário: Obama confirmou velho adágio político, o de que só os fortes podem parecer fracos.
O discurso do Cairo foi o mais importante pronunciamento de um presidente dos Estados Unidos no exterior. A História, se ele conseguir torná-lo realidade, poderá registrá-lo como registrou o de Lincoln, em Gettysburg, em 19 de novembro de 1863, em que o estadista curvou-se diante de todos os mortos de uma guerra que a política não conseguira evitar. O Cairo está na linha histórica da velha cidade da Pensilvânia.
http://www.jblog.com.br/politica.php - Jornal do Brasil, 05/06/2009

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