domingo, 14 de junho de 2009

Onde e como enterrar os mortos?

Affonso Romano de Sant’Anna*
Em algumas culturas,
há técnicas sofisticadas
de embalsamamento e
lavagem dos corpos e,
noutras, os ossos do morto
são descarnados e
lavados pelos familiares”


Não adianta fingir que já superamos a tragédia, empurrando-a para debaixo do tapete ou das ondas do equivocado esquecimento. É preciso elaborar as perdas. Por algum tempo ainda estaremos nos despedindo dos mortos do Airbus-330 que caiu no oceano.
Diversos estudiosos dizem que “o homem é um animal que enterra seus mortos”, que “nenhum grupo humano se desinteressa de seus cadáveres”. Estou me lembrando de uma foto de uma comunidade, creio que na Ásia, na qual bonecos representando os mortos ficavam de pé em varandas cavadas no alto de um rochedo, como se lá de cima contemplassem diariamente a faina dos vivos cá em baixo. Deste modo, aquela frase terrível “os mortos matam os vivos”, pode ser lida ao contrário —“os vivos revivem os mortos”.
William Grooke chegou a classificar 13 maneiras de como as diferentes culturas tratam os corpos dos mortos. Talvez haja mais. E fazer arte é uma forma de tentar retardar ou derrotar a morte. Seja como for, as diversas culturas praticam sepultamentos sob pedras e monumentos, em grutas, em casas, em imersão na água, na fogueira, em árvores, em plataformas, em nichos e em forma de feto. Em algumas culturas há técnicas sofisticadas de embalsamamento e lavagem dos corpos e, noutras, os ossos do morto são descarnados e lavados pelos familiares. Repito: é preciso elaborar material e mentalmente as perdas.
Uma das formas mais ambíguas de elaborar a morte do outro é o canibalismo. Enquanto em algumas culturas devora-se o inimigo como vingança e forma de absorver as suas virtudes, também em outras tribos pratica-se o endocanibalismo. Ou seja, as cinzas do morto são ingeridas pelos parentes que ficaram. Esse ritual foi apropriado pelo cristianismo, e o sangue e a carne de Cristo são absorvidos na Santa Ceia. Como assinalei no livro O canibalismo amoroso, a palavra hóstia no ágape cristão significa “vítima sacrificial”. A incorporação do outro, portanto, está presente no amor e na morte.
Quem já foi ao Cairo viu que o cemitério, no centro da cidade, está cheio de casas de gente viva. Quem já foi ao México viu que, no dia dos mortos, nas casas, erguem-se altares cheios de comida para que os mortos familiares sejam bem-vindos; enquanto isto, as famílias também fazem piquenique em torno das sepulturas.
Onde os especialistas em morte geralmente erram é em achar que o ser humano é o único animal que ritualiza a morte. É uma presunção arrogante. Uma desatenção a mais em relação à natureza. São inúmeras e tocantes as histórias sobre a comunhão dos seres vivos com a morte. Não quero chocar os vegetarianos, mas cientistas já registraram que frutas e legumes sofrem um stress terrível quando um legume ou fruta ao lado é colhido. O que dizer dos animais? Não apenas adoecem com seus donos, como a cachorrinha de minha amiga que perdeu o pelo quando a dona, também enferma, perdeu os cabelos.
Outro dia me encontrei com o pastor Mozart Noronha enquanto passeávamos nossos cães, e ele me contou que, por força de sua profissão, vai muito ao Cemitério do Caju realizar rituais fúnebres. E notou que ali há muitos cães. Perguntou então a um coveiro, o porquê daquilo e recebeu esta resposta: “Quando as pessoas daquela favela ao lado morrem, seus cães mudam para cá e ficam junto às sepulturas dos donos”.
Estaremos algum dia preparados para a morte alheia e a nossa? Uma conhecida estava já velhinha, cansada e um dia anunciou à família: “Amanhã vou morrer”. Deitou-se calmamente e morreu. É um luxo morrer assim. Tenho um amigo nos Estados Unidos (Fred Ellison) que um dia me convidou para ir com ele visitar sua futura cova. Registrei a experiência no poema Preparando a casa:
Meu amigo visita sua cova
como quem vai à casa de campo
plantar rosas.
Há algum tempo comprou
sua casa de terra, plantou árvores
ao redor
e de quando em quando vai lá ver
como sua morte floresce,
como se vivo pudesse
ali fazer o que só morto fará.
Olha, pensa, ajeita uma coisa e outra
depois volta à agitação da vida:
ama, come, faz projetos
pois já botou sua morte
no lugar que ela merece.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 14/06/2009

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