Arthur Dapieve
"Michael Jackson fracassou naquilo que todos nós fracassaremos, cedo ou tarde. Fracassou justo naquilo que a sociedade ocidental contemporânea tanto se empenha. Fracassou foi em parar o relógio", escreve Arthur Dapieve, em artigo publicado no jornal O Globo, 27-06-2009. Segundo ele, "a cultura pop da qual Jacko foi nobre é chegadíssima a se autoconsumir na juventude, conforme cria e descarta caras novas. Nada mais típico do que os Menudos, cujos membros não envelheciam nunca, eram para sempre miúdos".
Eis o artigo.
Eis o artigo.
Michael Jackson fracassou.
Não como artista, claro.
Ele conseguiu alcançar algo que outros grandes da música negra, como Sam Cooke, Otis Redding, Marvin Gaye, James Brown e Aretha Franklin — todos, diga-se de passagem, melhores cantores, o que apenas valoriza o feito de Jacko — só vislumbraram vez ou outra na vida: ser tão ou mais querido e apreciado nos bairros brancos do que nos guetos de origem. Ele não fracassou como negociante, é óbvio. Com seus discos e shows, Jacko fez, e ainda fará, ninguém duvida, muitos milhões de dólares, embora os altíssimos gastos — com o sítio Neverland, os tratamentos de saúde e os acordos para evitar que novas acusações de pedofilia chegassem aos tribunais — recentemente o tenham levado até a leiloar itens de seu guarda-roupa.
Michael Jackson fracassou naquilo que todos nós fracassaremos, cedo ou tarde.
Fracassou justo naquilo que a sociedade ocidental contemporânea tanto se empenha.
Fracassou foi em parar o relógio. É também por causa do terror que sentimos da morte que supervalorizamos as belezas da mocidade, esticando-a com plásticas, implantes, próteses, injeções, musculação, dietas, vitaminas, namoradas ou namorados jovens.
Jacko só tinha (bem) mais dinheiro. Pôde dormir na câmara hiperbárica, pôde ser reconstruído na mesa de cirurgia.
Jacko só tinha (muito) mais visibilidade. Sua pele era ridicularizada por ter embranquecido e não por ter rejuvenescido, o que, afinal, é nosso objetivo. Seu narizinho destacável não se parecia com o do Peter Pan das histórias da Disney à toa. Seu videoclipe memorável não era estrelado por mortos-vivos à toa. Agora, porém, o thriller acabou.
Consumada ou não consumada carnalmente, a sua pedofilia sofria daquele mesmo senso de desproporção. Não se trata de absolvê-la. A pedofilia é abjeta por fantasiar uma igualdade entre desiguais — não dois adultos, seja lá de que sexo forem, mas um adulto e uma criança — e não pode ser relativizada pela habitual pieguice que tudo perdoa num defunto fresco.
Trata-se, isso sim, de admitir que em menor grau toda nossa sociedade manifesta tendência à pedofilia com suas crianças hipererotizadas, adolescentes cheias de caras e bocas, modelos retas e mulheres maduras raspadas, como se nem tivessem entrado na puberdade. Em particular, a cultura pop da qual Jacko foi nobre é chegadíssima a se autoconsumir na juventude, conforme cria e descarta caras novas. Nada mais típico do que os Menudos, cujos membros não envelheciam nunca, eram para sempre miúdos.
Michael Jackson fracassou por isso. Ele não tinha como trocar de pele eternamente com outros Jackos crianças, não tinha como virar uma franquia de si próprio e ainda assim permanecer ele mesmo, pessoal e intransferível com o passado de abusos paternos e de inegáveis méritos artísticos.
Como intérprete, aliás, ele foi literal e metaforicamente da jovem guarda da Motown, a célebre gravadora de música negra de Detroit, que flertava às claras com o público branco, majoritário nos EUA (em contraposição à Stax, de Memphis, na qual o soul era “de raiz” e quem quisesse que gostasse). Jacko aprendeu com toda a black music. Pegou o figurino esdrúxulo de Little Richard aqui, o jeito de dançar de James Brown ali, adicionou seu próprio carisma...
No entanto, Michael Jackson fracassou porque não aprendeu a tempo que a única maneira de ser jovem para sempre é morrer cedo.
Publicado no site da IHU/Unisinos - 27/06/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário