quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Alemanha está se tornando islamofóbica

Erich Follath

Político Thilo Sarrazin propaga a islamofobia e
 tem aceitação cada vez maior na sociedade alemã

Os comentários de Thilo Sarrazin a respeito dos muçulmanos provocaram ultraje na Alemanha e no exterior, mas encontraram ouvintes receptivos entre o público em geral. Sua retórica está lentamente provocando mudanças na Alemanha, transformando o país de uma sociedade tolerante em uma dominada pelo medo e pela islamofobia

O Flautista de Hamelin sabia como combater a peste. Ele conhecia melodias sedutoras e foi bem-sucedido contra o flagelo com seus métodos não convencionais. Mas como a sociedade não lhe pagou nenhum tributo e se recusou a lhe pagar o salário que lhe foi prometido por seu serviço, ele decidiu agir de forma radical e atraiu as crianças de Hamelin. Ao fazê-lo, ele destruiu a própria comunidade que antes buscou salvar. Não se sabe ao certo quando e por que o dr. Thilo Sarrazin, 65 anos, filho de um médico e de uma filha de um proprietário de terras prussiano, que supostamente realizou um bom trabalho durante seu mandato como ministro das Finanças da cidade-Estado de Berlim e que tinha ideias incomuns, se transformou em um sedutor. Ele se via como um futuro chanceler e estava aguardando ser indicado por seu Partido Social Democrata (SPD)? Teria ele preferido se tornar presidente-executivo do Deutsche Bank, em vez de “apenas” um membro do conselho executivo do banco central alemão, o Bundesbank? Ele aprecia o papel de agente provocador e de convidado popular nos talk shows alemães? E ele realmente se importa com a preocupação absurda de que a Alemanha está “acabando consigo mesma” –como alega o título de seu novo livro– ao tolerar influências estrangeiras demais em sua sociedade?

As opiniões podem divergir entre aqueles que buscam interpretar o comportamento de Sarrazin. O que importa é que ele é alguém que passou de um político audacioso, de fala dura e um brincalhão anárquico, para um racista antimuçulmanos que inventa tolices a respeito da base genética da inteligência e sobre as “origens alemãs-judaicas da pesquisa da inteligência”. Essas ideias o levaram a expressar suas preocupações a respeito da “identidade cultural” da Alemanha e do “caráter nacional”, e culpando os imigrantes muçulmanos e sua suposta não-cultura por todos os problemas de integração – ignorando o fato de que tanto os imigrantes quanto o país anfitrião têm responsabilidade.

“Nós”, ele diz, se referindo à sociedade alemã como um todo, estamos, inevitavelmente, nos tornando menos inteligentes devido aos muçulmanos, que Sarrazin caracteriza como pessoas não dispostas a se integrar, estranhas e com deficiência cognitiva, que estão produzindo mais crianças na Alemanha. Sarrazin reconhece de forma magnânima que há exceções no mundo islâmico, talvez alguns poucos turcos inteligentes aqui e acolá. Mas seus pontos de vista basicamente eliminam a necessidade de até mesmo tratar da questão de uma política de imigração controlada, da qual o próprio Sarrazin já foi um defensor veemente no passado. Sarrazin disse que os muçulmanos devem “desaparecer”. Por esse ponto de vista, a integração é inimaginável, possível apenas por meio da morte – que, naturalmente, é também uma forma de resolver o problema.

Estatísticas seletivas

O respeitado jornal “Frankfurter Allgemeine Zeitung” chamou o livro de Sarrazin de um “dossiê antimuçulmano baseado em genética”. A chanceler Angela Merkel reagiu com irritação. Stephan Kramer, o secretário-geral do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, sugeriu que o autor considere se filiar ao Partido Nacional Democrático (NPD) de extrema direita.

O ministro do Interior da cidade-Estado de Berlim, Ehrhart Körting, um membro do SPD, espera que o livro provoque um processo legal por incitação de ódio. “Thilo está atualmente se perdendo”, ele disse. “Ele sempre teve apreço por estatísticas. Mas no debate da integração, ele utiliza apenas as estatísticas que se encaixam na sua imagem do inimigo.”

Christian Gaebler, que é chefe do SPD no bairro de Charlottenburg-Wilmersdorf, em Berlim, onde Sarrazin está registrado, disse: “É hora de um basta. Caso o sr. Sarrazin não saia espontaneamente, nós iniciaremos os procedimentos para sua expulsão do partido. Nós analisaremos cuidadosamente o seu livro e discutiremos a questão em nossa próxima reunião do conselho executivo, em 6 de setembro”.

A retórica de Sarrazin provocou até mesmo ultraje no exterior. Na França, o jornal “Le Monde” o chamou de um “provocador racista”. Mas a ampla repreensão entre os políticos e a mídia (seus companheiros banqueiros permaneceram eloquentemente em silêncio durante a controvérsia) é apenas um lado da moeda. As teorias de Sarrazin, na forma de trechos de seu livro e citações publicadas na “Spiegel”, no tabloide “Bild” e no semanário “Die Zeit”, também encontraram ouvintes receptivos dentro de uma população altamente ansiosa. Na verdade, eles têm apelo junto à maioria.

Socialmente aceitável

A escritora e socióloga turca- alemã Necla Kelek fez um discurso na apresentação do livro de Sarrazin na segunda-feira, no qual ela defendeu as ideias dele. Kelek é fã de Sarrazin e já recebeu vários prêmios na Alemanha, concedidos por pessoas que –como ela– consideram todos os problemas do mundo como sendo causados pelo Islã.

O livro já estava no topo da lista de best sellers da Amazon alemã quando foi publicado. Cada ameaça de expulsar Sarrazin de seu partido ou de sua posição no Bundesbank apenas aumenta sua notoriedade. Mas se nada acontecer, ele poderá se sentir ainda mais validado.

Se Sarrazin fosse um lobo solitário, um agitador em um deserto sem simpatizantes, ele poderia ser desdenhado como uma aberração. Mas com seu toque de flauta sedutor, o homem agora conta com uma horda de acólitos, incluindo mulheres descendentes de muçulmanos que ostensivamente se recusam a vestir lenço de cabeça e outros adereços. A retórica estridente está na moda e os ataques histéricos ao Islã estão a pleno vapor. Sarrazin e seus companheiros cínicos se tornaram socialmente aceitáveis há muito tempo.

Seus esforços estão tendo um efeito e estão promovendo mudanças na Alemanha. As mudanças não são suficientemente dramáticas para ameaçar a democracia imediatamente, mas são graduais, como um veneno que age lentamente. De um país cosmopolita caracterizado pela liberdade de religião, a Alemanha está lentamente se transformando em um Estado dominado pelos temores exagerados e que demonstra o início de uma sociedade islamofóbica.

É claro que esses temores não são completamente infundados. As condições em áreas como o bairro Kreuzberg de Berlim levantam preocupações reais, justificadas. Há salas de aula onde três quartos dos estudantes são de famílias de imigrantes, estudantes cujo alemão mal dá para acompanhar a aula. Há clãs árabes e albaneses que controlam os sindicatos do crime e que recebem os benefícios do bem-estar social. Há fenômenos como os casamentos forçados e assassinatos em nome da honra. Em algumas mesquitas, os imãs estão encorajando os fiéis a praticarem o terrorismo islâmico. Tudo isso existe, mas não tem nada a ver com o Islã comum e com o cotidiano de bem mais de 90% dos muçulmanos da Alemanha. Mas são precisamente essas coisas que alimentam as tentativas baratas de criar estereótipos dos muçulmanos como inimigos.

Parte 2: Paralelos com o antissemitismo do século 19

“Em nenhuma outra religião a transição para a violência e o terrorismo é tão fluida”, escreve Sarrazin.

O ex-correspondente do “Frankfurter Allgemeine Zeitung” e autor best seller Udo Ulfkotte, outro profeta do apocalipse, expressa preocupações semelhantes quando alerta: “Um tsunami de islamização está varrendo nosso continente”. O escritor e colunista holandês, Leon de Winter, que é muito celebrado na Alemanha e um colaborador frequente da “Spiegel”, alega ter reconhecido “a face do inimigo” na religião bizarra e geralmente trata os muçulmanos de forma pejorativa, escrevendo: “Desde os anos 60, nós enganamos a nós mesmos de que todas as culturas são iguais”. O jornalista e escritor Ralph Giordano, uma autoridade moral na Alemanha, é um forte crítico da construção de novas mesquitas e caracteriza o Islã como uma religião totalitária. E aqueles que toleram o totalitarismo não são nada mais que apaziguadores? Nós já não vimos isso antes?

Potencial para violência

Não há dúvida de que há muçulmanos na Alemanha que simpatizam com ideias radicais islâmicas (o que não significa necessariamente que estão preparados para o uso da violência). Um relatório do Escritório Federal para a Proteção da Constituição, a agência de inteligência doméstica da Alemanha, inclui 36.270 muçulmanos neste grupo, um número que aumentou ligeiramente nos últimos anos – aproximadamente 9% desde 2007. Também é inegável que os homens-bomba de todo mundo frequentemente invocam o Islã –um fenômeno deplorável, mas não isolado. Toda religião monoteísta, por meio de sua reivindicação de exclusividade, contém potencial para violência.

Mas ninguém condena o cristianismo como um todo quando as facções separatistas da Irlanda do Norte cometem assassinato em nome de Deus. Nós não culpamos todos os católicos quando alguns deles matam, invocando sua fé, os médicos que realizam abortos. E não culpamos todo o judaísmo quando um terrorista judeu chamado Baruch Goldstein assassinou dezenas de muçulmanos durante suas orações em Hebron, invocando Javé.

Mas nós condenamos o Islã, cujo livro sagrado contém tantas passagens glorificando a violência quanto o Velho Testamento (que, diferente do Alcorão, menciona o apedrejamento como punição).

É claro, a desconfiança disseminada de muçulmanos, que apenas cresceu nos últimos anos, tem muito a ver com os ataques terroristas do 11 de Setembro em Nova York e Washington. Está longe de ser um fenômeno puramente alemão.

‘Crescente hostilidade’ nos EUA

Nos Estados Unidos, tradicionalmente um país de imigrantes, onde os muçulmanos estão muito melhor integrados à sociedade do que na Alemanha, o plano de construção de um centro cultural islâmico e mesquita próximo do Ponto Zero, em Nova York, provocou uma controvérsia acalorada. Os comentários dos fomentadores de ódio da “Fox News” e de importantes republicanos levaram a revista “Time” a concluir, em uma história de capa em sua mais recente edição, intitulada “A América é Islamofóbica?”, que há sinais de uma “crescente hostilidade” em relação aos muçulmanos. O novo governo da Holanda será forçado a tolerar o político populista de direita, Geert Wilders, que até mesmo propôs a proibição do Alcorão.

Na Itália, Dinamarca e Áustria, partidos populistas de direita estão marcando pontos políticos com seus rudes slogans anti-islâmicos. Na Suíça, um país com uma população muçulmana muito pequena, eles até mesmo conseguiram vencer um plebiscito proibindo a construção de minaretes. E na França, as banlieues, áreas de baixa renda na periferia das grandes cidades, estão em chamas porque o governo francês não consegue oferecer nenhuma solução para a falta de perspectivas para a maioria dos jovens muçulmanos.

Na Alemanha, que ao menos teve certo sucesso na integração de estrangeiros, o sentimento contra os muçulmanos agora é igualmente histérico. Um homem como Sarrazin é aplaudido por se comportar como uma versão menos ruidosa de Wilders. Mas por quê?

Bode expiatório popular

O grande apoio a Sarrazin também mostra que há potencial na Alemanha para um partido à direita do Partido Democrata Livre pró-negócios e do Partido Democrata Cristão conservador. Se Sarrazin criasse esse partido após sua possível saída do SPD, ele poderia conquistar pelo menos 10% dos votos. Políticos passivos e sem criatividade, grandes partidos sem nenhuma política real de integração e, acima de tudo, associações islâmicas em desacordo, contribuíram para a possibilidade de germinação da semente da islamofobia na Alemanha, que pode começar a crescer ao ser fertilizada por pessoas como Sarrazin.

O conceito dos muçulmanos como inimigos está se tornando mais direcionado, com o Islã sendo responsabilizado por muitos problemas sociais, como o desemprego, a suposta enxurrada de estrangeiros e os déficits na educação. Uma religião se transformou em bode expiatório – e alvo do ódio e intolerância.

Sites populares na Internet como o blog alemão “Politically Incorrect” nem mesmo se dão ao trabalho de fazer as distinções necessárias. Algumas das postagens no site indicam esta tendência de generalização, com postagens como: “O Islã é uma doença mental voluntária”, “É inútil lutar com essa cultura inferior” e “Há apenas uma palavra para descrever o Islã: barbarismo”. O anonimato da Internet permite que o ódio cego sem limites cruze os últimos limites da inibição. Os seguidores do Profeta Maomé são descritos de forma variada como “fornicadores de cabras” ou “vadias de véus”. “Muçulmano imundo!” e “Maldito condutor de camelo” estão entre as expressões pejorativas mais populares entre os jovens atualmente.

O Profeta Maomé tem mais do que um problema de imagem. Segundo uma pesquisa da Emnid, a maioria atualmente o considera quase tão repugnante quanto Pôncio Pilatos, o prefeito romano que autorizou a crucificação de Jesus. Cerca de 52% dos alemães seriam contrários ao casamento de seus filhos com uma pessoa muçulmana ou apenas aceitariam com fortes reservas, enquanto 46% seriam contrários ao casamento de seus filhos com uma pessoa budista e 30% com uma judaica.

‘Ódio inacreditável’

O professor Wolfgang Benz, um antigo diretor do Centro para Pesquisa do Antissemitismo na Universidade Técnica de Berlim e co-fundador do “Dachau Review”, com o qual estabeleceu a pesquisa dos campos de concentração, agora vê paralelos entre os agitadores antissemitas e os “críticos (extremos) do Islã”. “Os populistas no Ocidente estão respondendo à imagem do Ocidente como sendo o inimigo, propagada pelos demagogos dentro do mundo islâmico, com sua própria imagem do Islã como sendo o inimigo.” Eles utilizam ferramentas semelhantes, explorando imagens distorcidas e histeria. “O ato de equiparar cidadãos alemães que são muçulmanos com terroristas fanáticos é deliberado e emoldurado como um apelo ao sentimento popular.”

Benz vê a fobia contra outras culturas ou minorias como sendo um mecanismo de defesa. Uma imagem do inimigo é construída por meio de generalização e da redução da informação a boatos. Um exemplo clássico são os “Protocolos dos Sábios de Sião”, um livreto antissemita escrito no final do século 19, que supostamente fornecia evidência de uma conspiração judaica global. Apesar de cada detalhe do texto ter sido desmascarado como incorreto, czares russos e, acima de tudo, os nazistas o utilizaram para incitar as pessoas contra os judeus. O texto ainda está disponível atualmente nos países islâmicos que agitam contra Israel. “Qualquer um que fique –corretamente– indignado com imbecilidade do antissemitismo, também deve adotar uma visão crítica da forma como o Islã é retratado como o inimigo”, escreveu Benz em janeiro.

Benz tem sido fortemente atacado por esse raciocínio. Ele é alvo de agressões verbais e até mesmo de ameaças. “Eu estou diante de um ódio inacreditável”, diz Benz, apesar de não ter nenhuma intenção de trivializar o antissemitismo. Mas na Alemanha de hoje, parece que poucas pessoas estão interessadas em aceitar um ponto de vista diferente.

Nunca mais visto de novo

A Alemanha está mudando. E apesar de ainda não ser consistentemente uma sociedade islamofóbica, um república de Sarrazin, ela está certamente a caminho de se transformar em uma.

O Flautista de Hamelin nunca mais foi visto de novo após seu desaparecimento. Com todo o respeito, seria um pensamento atraente não ouvir mais a respeito de Thilo Sarrazin por muito tempo. Mas o Flautista não devolveu as crianças que abduziu. Apenas duas escaparam, uma cega e outra surda. Mas nenhuma delas conseguiu ajudar as outras crianças, que foram todas perdidas.
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Tradução: George El Khouri Andolfato

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