Peça em 2 atos e 6 cenas
1º. Ato - A PERGUNTAÇÃO
Prólogo do 1º. Ato
O arqueiro dispara a flecha na intenção de acertar o alvo colimado mas, supremo império da casualidade, um pássaro cruza a rota do projétil e zás! é atingido e se precipita ao solo agonizante, o dardo cravado na carne. Já viram isso acontecer? Neste caso, supondo que o arqueiro não fosse avesso à caça nem vegetariano, e a ave não fosse o papagaio do vizinho, a casualidade lhe teria sido benfazeja: decerto, uma refeição garantida! Assim costuma ser a vida real…cheia de incertezas e de imprevistos, estes amiúde bem-vindos.
Fernanda estava digitando as primeiras palavras de suas considerações sobre o post anterior, “Vida, Entropia e o Futuro da Civilização” - havia já disparado o “dardo da criatividade” - quando irrompeu na tela do notebook, numa janelinha de chat, sua amiga Iracema, filósofa e poeta, anunciando: “Olá, Fê, tudo bem? Andei lendo o Repaginando. Preciso te dizer umas coisas. Podemos prosear Você pode levar um plá agora?”. Surpreendida, Fernanda assentiu.
Amigas desde o tempo em que as pessoas ainda se trocavam cartas, agora mantinham uma constante comunicação virtual, que sempre tocava em temas de interesse comum - filosofia, poesia, arte, a vida, o futuro.
Foi sem dúvida um pássaro atravessando a trajetória do dardo que mal havia largado o arco, uma casualidade benfazeja. É o que o dito popular nos ensina: “Atirou no que viu, matou o que não viu”. Mais que casualidade, sincronicidade pois, ainda que não sabendo o que Fernanda fazia no momento, Iracema no primeiro lance da partida entregou a bola de graça e a cortada de Fernanda foi fatal: o placar estava inaugurado. Vejamos por quê.
Cena 1 - Diálogo: Desfilando dúvidas
“Acredito que Mercado, Ciência e Morte são mesmo deuses que criamos na virada do século XX para o XXI”, foi como irrompeu o discurso de Iracema. E engatou ela, em disparada: “A própria ciência acabou se tornando mercado na medida em que virou produto através da tecnologia e, ao mesmo tempo, ambos tentam nos iludir em relação à morte. Estamos morrendo de muitas maneiras diferentes, estamos nos esquecendo, perdendo a aletheia, mergulhando cada vez mais num rio de perdas.” Apanhada desprevenida, Fernanda deixou fluir o veloz raciocínio da amiga, esperando que o fraseado se fechasse para então entrar em cena.
E lá foi Iracema deitando fala: “Será que estamos mesmo condenados à entropia, ao processo de desgaste e desordem cósmicos? Ou será que essa desordem, não é - como está dito numa das postagens anteriores de vocês - algum tipo de ordem que não podemos ainda compreender? O conceito de cosmos, no sentido grego, implica em uma ordem em relação ao caos, mas tanto na Grécia antiga quanto hoje na ciência, acredito que esses conceitos tenham sido criados pela nossa experiência humana, por aquilo que pudemos ler no Universo: é um mundo que inventamos.” Fernanda foi dando passagem: “Hum, hum…correto! Vai em frente…”
Finalmente, Iracema arrematou: “O filósofo luso Boaventura Santos nos diz em seu ‘Discurso sobre as Ciências’ que, assim como antes Descartes decidiu adotar a dúvida como método, nós precisamos hoje aprender a conviver com a incerteza. Parece-me que a ciência não está acenando com uma certeza, são tentativas de explicação do Universo. Assim, de alguma maneira e na visão de alguns, a Lei da Entropia seria uma tentativa de explicar a dinâmica do mundo. Talvez precisemos inventar leis universais e certezas, como uma ilusão para suportar a navegação no caos, nessa ideia de que ‘tudo agora mesmo pode estar por um segundo’, lembrando os versos de Gil que você, Fê, costumava cantarolar.”
Enquanto Iracema ia despejando as idéias em pequenos blocos, que se uniam por reticências no fim de um e no princípio do próximo, Fernanda rapidamente ia sacando que a casualidade - benfazeja! - tinha atravessado aquela passarinha amiga na sua linha de tiro, e não foi à toa: iria trabalhar em cima de todas aquelas, digamos, provocações. O texto que iria começar a digitar já estava começado, por uma delegação tácita…ou, quem sabe, obra de uma inusitada telepatia? E melhor, o dardo, por virtual que fora, não abatera o alvo móvel que lhe atravessara o caminho: passara raspando e apenas lhe aumentara a vivacidade e a excitação mental.
Face a essa leitura de contexto, Fernanda interrompeu, ainda que timidamente, o jorro verbal da amiga, e digitou tudo de uma só enfiada, tentando, ao tempo que assimilava as palavras recebidas, sobre elas replicar: “Olha que coincidência, Ira, estava mesmo para começar a trabalhar sobre esses temas! Então vamos lá. Penso que nossa peleja é, em verdade, com o destino e com a liberdade. Decifrando as leis do mundo, o destino torna-se controlável e não um capricho de deuses ou puro acaso. Assim foi desde os primeiros filósofos e assim viemos seguindo: vivemos ainda sob o legado cartesiano que defendia a mathesis universal - uma ordem universal decifrável e traduzível matemática e abstratamente. Chegamos com a ciência aonde chegamos graças à premissa de que tudo é decifrável e, portanto, susceptível a manipulação a nosso bel prazer. Assim temos a ilusão de que nós é que fazemos nosso destino: é o deus Ciência tomando o lugar de um deus instituído, judaico-cristão, muçulmano, ou o que mais seja. É a busca da certeza posta no lugar do cultivo da fé.”
Interlúdio
Era de ver: duas jovens mulheres filosofando com entusiasmo, cena por exemplo muito improvável na Grécia socrática, que as confinaria no gineceu para dedicarem-se a atividades frívolas; ou no medievo, onde arderiam na fogueira como bruxas porque pensantes. Algo de muito bom nos trouxe a modernidade…
Bem, era hora de uma parada para digerir e redigir notas finais. Despediram-se, sinalizando acontinuidade oportuna de uma nova interação. Fernanda decodificou o dialeto digital das postagens, traduzindo-o para o português legível e…teve uma idéia: “Vou enviar isto tudo para meu pai ler e comentar. Quem sabe ele bota algumas alcaparras nesse salmão…”
“Que surpresa!” pensou Homero ao receber a maçaroca. “Pensei que ia passar ao largo desta vez, mas essas idéias me desafiam, me instigam, quero mesmo dizer algo!” E, com afinco, foi enfileirando as palavras que lhe vinham aos borbotões para encontrar uma expressão adequada do que estava pensando - buscava les mots justes. Eis o que resultou.
Cena 2 - Monólogo: Botando os mitos pra correr
“Vejo que continuamos contaminando o conceito de Deus, associando a essa abstração a noção de bondade infinita. De fato, é resultado de uma projeção maciça de nossos medos. Como fator de defesa biológica e, por extensão, psíquica, o medo ativa a secreção da adrenalina e nos põe em prontidão para enfrentar as ameaças e incertezas. Mas excesso de adrenalina, além de quebrar o equilíbrio orgânico e trazer desconforto físico, é tóxico, levando-nos à depressão e ao estresse e pondo de novo em risco nossa integridade. A adrenalina desperta uma pulsão agressiva que se expressa como raiva, como movimento dirigido a combater a situação de perigo. O medo assim leva à raiva, e ambos, esses dois ‘gigantes da alma’, como os denominou o psicólogo hispânico Myra y Lopez, são prejudiciais ao bem-estar individual, à estabilidade coletiva, ao equilíbrio dos seres humanos em convívio.”
“Quem nos pode então salvar desse perverso ciclo psicossomático? Um ser superior, Deus, ser transcendido que não tem medo nem raiva: é bondoso, compreensivo… Um deus antropomórfico, por nós criado para nos apaziguar e proteger! As hierarquias sacerdotais historicamente se apossaram dessa representação imagética e passaram a falar em nome dela, ditando normas de comportamento que estabelecem uma sutil ligação entre Deus, ordem, conduta correta - a que nos assemelha à divindade! - moralidade e…subserviência: ‘Aceite o que ele ordena ou você perde seu amor e sua proteção, e o medo e a ira passarão de novo a habitar sua alma, levando-a à perdição eterna’. E eis-nos subjugados! É aí que, de fato, mora o perigo de que queremos nos desvencilhar. Bondade e maldade são extremidades de um mesmo continuum, são paradoxos que se conciliam num nível superior de resolução, como nos ensina a transdisciplinaridade. No nível cósmico, ambos interagem na recriação e manutenção do mundo, e Deus, essa abstração de fato incognoscível, seria entretanto suficientemente abarcador para acomodar a dualidade que surge primordialmente do enjaulamento a que submetemos nossa consciência. Mas a liberdade não estaria em eleger novos deuses imagéticos estranhos a esse Deus de bondade, como a tríade Mercado, Ciência e Morte: de novo, sacerdotes surgiriam - como já os há aí aos milhares! - para falar em nome deles e ditar normas de conformidade. A liberdade surge da relação íntima do sujeito consigo mesmo, do discernimento construído a partir de uma observação descontaminada. Mas isso vai contra a norma instituída e ai de quem salta fora da norma…quem arrosta a cultura dominante. É marcado pelos patrulhadores do sistema, sujeito a ser desfigurado com desqualificações e a marginalização. É disso, dos comportamentos alienados, conformados, de rebanho, que derivam todos - concedamos, quase todos - os males de nossa civilização, que afinal acaba por não garantir ‘qualidade de vida para as gerações futuras’, para citar uma frase na moda, nem para as gerações presentes”.
“Ao focalizar comportamentos de submissão, surge seu antagônico: a autonomia. Isso remete a dois temas tratados sob várias formas no que conversaram Iracema e Fernanda: Destino e Liberdade. Aí vamos! Claramente, quanto mais aceitarmos que somos predestinados, ou seja, que nossa vida é regida por um Destino, menos espaço estaremos dando para a Liberdade, entendida esta como nossa capacidade de escolher os rumos da vida. Isso é óbvio! Há entretanto aí um meio termo.”
“Vêm-me à memória dois conceitos que nos meus anos de vida corporativa costumávamos utilizar para descrever a lógica do processo de gestão: autonomia tática e heteronomia estratégica. Funciona assim: todo executivo, aquela figura que responde com sua equipe pela gestão de segmentos do negócio, está subordinado a definições organizacionais que delimitam o propósito ou a direção de suas ações gerenciais. Essas definições dizem respeito aos rumos que foi decidido imprimir aos negócios pelo mais alto nível da organização, sua alta direção e, no seu conjunto, constituem a estratégia da organização. Em relação a cada executivo, a estratégia tem caráter mandatório, é uma norma condicionante que deve estar refletida em todas as suas ações individuais. Para entretanto alcançar os objetivos do cargo que ocupa, é facultado ao executivo fazer escolhas que traduzam seu senso de prioridade, seu estilo de gestão e seus valores pessoais, enfim, escolhas com certo grau de liberdade - desde que não infrinjam as estratégias definidas, ou melhor ainda, assegurado que contribuam à realização da estratégia corporativa.”
“Esses graus de liberdade na ação individual constituem sua autonomia tática. Sua dependência das normas determinantes de nível superior é a expressão da heteronomia estratégica a que está sujeito. Destino seria assim a heteronomia estratégica que condiciona nossa vida a trilhar grandes linhas de ação ou a atender a vocações predefinidas. Liberdade seria a expressão de nossa autonomia tática para fazer as escolhas pessoais comportadas e regidas pelo destino. Pelo menos no plano filosófico, Destino e Liberdade podem coexistir e se conciliar, o difícil é identificar no curso da vida onde começa um e termina outra. Na organização isso é mais fácil: está tudo explicitado no modelo de gestão e nas definições institucionais que dele decorrem. Lamentavelmente, não dispomos, os humanos, de um ‘modelo de vida’ que nos dê essa resposta, quando muito podemos nos valer de artifícios mágicos como um bom mapa astrológico ou um ensaio divinatório segundo a numerologia pitagórica…que podem até confortar nossa alma e reduzir nossa ansiedade, mas não há escape: nossa jornada vital é inerentemente impregnada da incerteza. Pronto! está relativizado o Destino e exaltada a Liberdade.
“Ainda sobre a liberdade. O Prêmio Nobel Amartya Sen, um dos criadores do IDH - Índice de Desenvolvimento Humano adotado pela ONU como complemento do PIB - uma tentativa de fuga de um puro economicismo -, coloca a liberdade como a meta central da busca da qualidade de vida, mas associando-a ao desenvolvimento sustentável - esse fatídico oximoro! - o que acaba por isso mesmo resultando num equívoco. De novo, o fantasma do crescimento econômico está nas redondezas, levando, a meu ver, a uma espúria relação entre liberdade e superação de privações, que implicam em mais atividade econômica para atender um consumo mitigador ampliado, com os impactos conhecidos no futuro imediato sobre os ecossistemas e na viabilidade das gerações vindouras. Mas qual seria a alternativa? Esse é talvez o magno dilema político do presente: conciliar liberdade, consumo e justiça social, sem desintegrar de vez os ecossistemas que sustentam toda a forma de vida. Complicado, muito complicado…”
“De todo modo, quando coloco como espúria essa conexão entre liberdade e crescimento econômico, é porque isso transforma a liberdade em dependente de fatores externos ao ser humano, não a tratando como uma categoria ontológica, a ser construída a partir - com ênfase no ‘a partir’ - da expansão da consciência, derivada esta de uma nova visão de mundo e de uma ética dela decorrente.”
Interlúdio
Nova sessão de teclagem entre as jovens pensadoras, agora com hora marcada e desta vez sem “flechas atingindo passarinhas de raspão”. Não se sabe bem ao certo qual foi o impacto das considerações encomendadas por Fernanda a Homero, nem se foram compartilhadas na íntegra com Iracema. Mas auspiciosamente o assunto entre as duas enganchou, ao menos pareceu, no espírito da coisa dita, porém introduzindo novos temas para reflexão.
Cena 3 - Diálogo: Fazendo Nietzsche sorrir J
“Oi Ira, vamos então prosseguir no nosso papo?”, convida Fernanda, já ambas conectadas. E cutuca: “Que você acha dessa idéia da entropia, de que tudo irremediavelmente vai um dia acabar? Para mim, é irrelevante tudo continuar eternamente ou inevitavelmente chegar ao fim. Temos então que nos perguntar: será o crescer realmente nosso meme imperial, nosso imperativo cultural análogo ao genético?”
“Gostei da questão, Fê!”, logo assente Iracema. “Creio que o crescimento do ser humano, entendido como sua realização máxima em suas escolhas conscientes e inconscientes, é possível para algumas pessoas em certas fases de suas vidas. Penso que é impossível estarmos realizados plenamente durante todo o nosso tempo vital, mas há momentos, sim, em que nos sentimos em nossa Máxima Potência, como a definiu Nietzsche. Máxima potência é esse sentimento de liberdade que nada tem a ver com livre-arbítrio mas com as nossas próprias atitudes. O problema é que, do ponto de vista da dinâmica social, é usual alguns se realizarem às custas de muitos outros. Há uma crueldade na nossa índole que o pensamento da revolução científica cartesiana não admitia e que pensadores posteriores começaram a admitir… o que entendo é que Descartes não quis admitir o Mal nem no humano nem no mundo: Deus sendo sumamente bom, garantiria o nosso progresso sempre, e para o Bem. Penso que Freud e Nietzsche, e antes deles Hegel, encararam o mal, admitiram o mal como parte integrante do processo da existência.”
“Tem mais”, prossegue. “Sou levada a concordar com o Homero quando diz no último post ‘… eu não vejo que o ser humano tenha um grau de altruísmo suficiente para fazer algum tipo de renúncia ao seu conforto em função da continuidade da espécie ou da continuidade de boa parte da vida que ele arrastará consigo para o buraco’. Penso que Freud e Nietzsche também viram o ser humano dessa maneira e é algo, por exemplo, bem diferente do que Descartes pensava no início da revolução científica no século XVII. Com Nietzsche e Freud soubemos que é bem diferente. Temos motivações inconscientes, não somos seres racionalmente bons e muitas vezes somos mesmo perversos. Voltar à esperança no ser humano enquanto espécie parece algo difícil, mas me parece que nem Nietzsche nem Freud pensaram que sendo assim isso seria o fim de tudo…”
Freud dizia que três descobertas
foram feridas narcísicas para a humanidade:
a de Copérnico, de que nosso sistema é heliocêntrico e não geocêntrico;
a de Darwin, de que descendemos dos macacos;
e a da existência do inconsciente, de sua própria autoria.
“Isso me remete à questão que me ficou, a partir da fala da Nathalie, no mesmo post“, intervém Fernanda. “Terminei a leitura querendo poder perguntar à Nathalie por que razão se mostrou tão incomodada com a idéia de um fim. Por que pensar-nos finitos, como espécie humana, nos faria tão pessimistas? Parece-me também que a idéia de entropia nos fere narcisicamente. Freud dizia que três descobertas foram feridas narcísicas para a humanidade: a de Copérnico, de que nosso sistema é heliocêntrico e não geocêntrico; a de Darwin, de que descendemos dos macacos; e a da existência do inconsciente, de sua própria autoria. Digo que a ideia de entropia seria uma quarta ferida narcísica. Tanto fazemos, tanto construímos para no fim tudo se acabar! Talvez seja esse o incômodo que a ideia de entropia gera e por isso o pessimismo que sentimos decorrer dela.”
“Mas podemos pensar nesse fim usando o reverso da moeda: a idéia de Eterno Retorno, de Nietzsche. No eterno retorno, em lugar de tudo tender para um fim, se postula que o tempo seria circular e que tudo que vivemos voltaria eternamente a acontecer, ad infinitum. Bem, pensemos por um momento como seria nossa vida se nunca se acabasse, se tudo apenas se repetisse, carecendo de começo ou fim, em movimento circular. Se assim fosse, o que estamos agora vivendo já estaria marcado, o destino nos teria marcado irremediavelmente por ações passadas. Para que fazer algo, se tudo já está marcado pelo que já fizemos? Para que fazer algo se o decreto de que tudo se repete se imporá inexoravelmente? Tanto como a idéia de entropia, o eterno retorno pode nos conduzir a um pessimismo, ao niilismo, à falta de um sentido para a existência. Nada alentador, não é?
“Mas o interessante é que face a esse niilismo, a essa falta de um télos, de um rumo para a existência, Nietzsche nos conclama a reagir de forma ativa e não a aceitar passivamente”, contrapões Fernanda. “Do núcleo da falta de sentido e da inexorabilidade do destino, brotaria um imperativo: viver cada momento como se fosse repetir-se eternamente. Ser capaz de ter coragem, mesmo sabendo-se predestinado, fadado, com um fardo a carregar. É esse o amor fati, amor ao fado, ao destino. de que nos fala o filósofo! É o amor que anima o herói trágico que, não importa o que faça, tem seu destino já traçado pelos deuses e, ainda assim, tem coragem e vai à luta. O eterno retorno de Nietzsche e a entropia, a outra face da moeda, me fazem pensar que seja quiçá irrelevante se tudo perece ou continua: o que vale é a coragem de arriscar-se, de afirmar-se, de construir mesmo aquilo que está fadado a perecer ou a repetir-se eternamente. Tanto faria…”
“Sim! É o poder de dizer SIM”, se entusiasma Iracema. “Em Nietzsche há esse imperativo que corresponde à ideia de eterno retorno: ‘Que seja sempre assim!’. Se o Universo tende irremediavelmente para o caos, podemos dizer sim? Podemos afirmar a vida mesmo nessa ‘tragicidade’? Acho que é isso que tentamos quando, apesar de tudo e de todos, não fugimos: estudamos, trabalhamos, temos filhos, damos aulas, amamos e desamamos, nos desiludimos, e voltamos a nos iludir, a amar novamente…”
“Mas toda vez que me ponho a pensar seriamente sobre a auto-afirmação e a máxima potência, me vem um receio de que isso seria mais do mesmo - um lema para a apologia do progresso pelo progresso, para o afã de dominação cada vez maior”, pondera Fernanda, com certa contrição. “Mas daí me lembro de Nietzsche em Zaratustra, em ‘Dos Pregadores da Morte’, quando diz: ‘Vós todos que amais o trabalho furioso e tudo o que é rápido, novo, singular, suportai-vos mal a vós mesmos: a vossa atividade é fuga e desejo de vos esquecerdes de vós mesmos’. Isso aparece lá num momento em que ele fala daqueles que pregam a morte ou, usando a metáfora, dos devotos do deus Morte. Bem, a atividade excessiva, o crescimento pelo crescimento é um jeito de agir que pode levar a morrer de conforto, como você mesma, Ira, comentou uma vez. Crescer por crescer é se esforçar para dominar a Natureza por completo, para controlá-la inteiramente, mas nesse movimento ignoramos a incerteza e fugimos da dor e, conseqüentemente - já que a dor faz parte da vida -, de nós mesmos. Ao postular o crescimento indiscriminado, fugimos da própria vida e nos devotamos ao deus Morte.”
E vai Fernanda aduzindo: “Nesse sentido, poderíamos pensar o que você disse da maximização da potência como um crescimento também, mas não em qualquer direção e sim em direção à vida, à sua expansão. No entanto, já vimos que caminhando lado a lado com a pulsão de vida está a de morte, como diz Freud… É necessário, portanto, que adotemos uma postura de contínua escolha para a vida, escolha muitas vezes fadada ao insucesso, pois é impossível ter certezas absolutas, como já vimos. Estamos no fundo falando de uma reinvenção constante em que, parafraseando Clarice Lispector, ‘a direção é mais importante que a velocidade’, e em que devemos, na medida do possível, exercitar como foi dito num comentário ao post anterior, o ‘pratyahara’, o olhar para dentro de que falam os indianos. Seria um outro jeito de nos desenvolvermos - crescer não ocorre só ‘para fora’, nas extensões somáticas, no exossoma, mas ‘para dentro’ também.”
Embora empolgada com o encadeamento que construíra, Fernanda buscou arrematar: já podia finalizar seu pensamento. “Realmente, admitindo que o hipotético desenvolvimento da telepatia nos livraria de toda uma parafernália exossomática, a índole do ser humano não permaneceria entretanto intocada? Nesse sentido concordo que devemos voltar o olhar para outra direção, mas num outro sentido, naquele que Foucault, ao estudar as práticas de subjetivação desde a Antigüidade, chamou cuidado de si, nome que ele dá a todas as práticas de auto-cultivo, de construção e reinvenção permanente de si mesmo, visando um melhor auto-governo. Cultivar-se, cuidar de si implica em conhecer-se a si mesmo e portanto lidar com muitas sombras. Creio que vimos fugindo de nossa condição de finitude, da tragicidade que a vida carrega, da responsabilidade enorme de fazer de nossa vida uma obra de arte, de nos tornarmos nós mesmos. Porque cuidar-se implica em conhecer-se, em lidar também com perdas, com sombras, com a dor. Lidar com as sombras e com a dor, eis o nó da questão…”
Epílogo do 1º. Ato
Há horas em que o corpo todo pede para parar, começando por provocar coceira na cabeça, forçando-nos a chicotear o cabelo de um ombro a outro (válido apenas para cabeças com longas madeixas ou generosos apliques), fazendo-nos compelir a mão a ajeitar incessantemente os papéis sobre a mesa, e outros sintomas quejandos de inquietude. E começa também o linguajar monossilábico, no caso a teclagem: “Hum, hum… É, tá, tá bom… É isso aí!”
Os sinais de fadiga presentes, aliás bi-lateralmente, foram atendidos e ambas combinaram parar. Mas o papo em andamento ainda iria adiante, agendaram um novo conversatório. Fernanda cumpriu seu ritual de tradução das falas para o português legível e…oh! insopitável tentação! resolveu enviar de novo ao pai todo o material para nova intervenção, melhor dizendo, contribuição - aliás dever implícito de blogueiro parceiro.
_____________________FONTE: http://mercadoetico.terra.com.br/ 08/09/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário