segunda-feira, 6 de setembro de 2010

COELHO E CARTOLA

Juremir Machado da Silva*


Numa boa, eu entendo o interesse de tantas pessoas pelos livros de Paulo Coelho. Embora seja rasteiro, ele escreve melhor do que a maioria dos escritores brasileiros premiados. Dá para entender o que ele diz. Que coelho tem na sua cartola? O interesse que quase todos temos por mistérios, a crença de muitos em forças invisíveis, o desejo de muita gente de encontrar um caminho seguro, de achar uma resposta para tudo, de contar com um guia, e a vontade de se descobrir um sentido para a vida. Num mundo complexo, Paulo Coelho traz de volta o charme das explicações primitivas. As pessoas adoram transformar coincidências em sinais. Faz parte do nosso primitivismo. Outro dia, na televisão, uma senhora declarou: “Depois que eu tive um câncer e não morri, compreendi que Deus me deixou na terra para cumprir uma missão”. Pode ser. Nada, porém, pode provar que é assim.

"A sabedoria oriental parece resumir-se ao seguinte:
dado que não se pode ter, melhor não desejar.
O desejo é fonte de todos os males da humanidade.
E de todo o bem. Sem desejo, nada se move.
Sem certo grau de narcisismo,
de ambição e de competição,
 tudo estaciona."


Crer é muito importante. Paulo Coelho mexe com o desejo de crença da humanidade. Coloca grandes pitadas de orientalismo na jogada. Esse distante Oriente tornou-se um mito no Ocidente. Esotéricos de todos os tipos acreditam numa sabedoria oriental. Essa sabedoria não salva os orientais de guerras, miséria, desigualdade social, racismo, xenofobia, intolerância religiosa, exclusões e exploração de uns pelos outros. Parte da extrema-direita ocidental terceiro-mundista adoraria que seus compatriotas seguissem o modelo indiano de resignação. A sabedoria oriental parece resumir-se ao seguinte: dado que não se pode ter, melhor não desejar. O desejo é fonte de todos os males da humanidade. E de todo o bem. Sem desejo, nada se move. Sem certo grau de narcisismo, de ambição e de competição, tudo estaciona.

Eu aprendi lendo Paulo Coelho: aprendo que a humanidade não é confiável, continua pobre de espírito e, embora o desenvolvimento tecnológico e científico seja extraordinário, o imaginário permanece subdesenvolvido. A obra de Paulo Coelho funciona como um sintoma. Quem já não acordou algum dia saturado, entediado e desejoso de uma mudança radical de vida? Paulo Coelho faz crer que isso é possível e que tem a ver, antes de tudo, com um aprendizado espiritual marcado por etapas rituais, descobertas, segredos e grandes lições morais. Parece um jogo. Reagimos como crianças grandes. Acreditar em vampiros pode ser mais excitante do que crer no valor modelar dos jogadores de futebol. Queremos algo. Precisamos de uma dose de transcendência. Experimentamos.

A magia de Paulo Coelho consiste em encarnar plenamente o espírito da época. Toda a nossa pobreza intelectual está nas suas páginas. Toda a nossa fragilidade emocional aparece nas suas narrativas. Toda a nossa incapacidade de inventar um novo imaginário transparece nos seus relatos. Paulo Coelho nos produz. Claro que nem todos. Mas traduz a tendência, o dominante, a inclinação do nosso tempo. Livres de tudo, buscamos alguma amarra. A filosófica de Paulo Coelho aparece inteira neste clichê: “Abençoe e será abençoado”. Quem poderia imaginar o contrário? É isso aí.
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*Filósofo. Escritor.
Fonte: Correio do Povo, 05/09/2010

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