segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O fim do limite entre o que se faz em casa e no escritório

Lucy Kellaway*

Existe um homem novo na redação que ocupa uma mesa logo atrás da minha. Na maior parte dos dias ele chega cedo, assim como eu, e enquanto folheio os jornais, ouço um som farfalhante e o retinir de metal em porcelana, seguidos de um ruído de mastigação. Vejo que ele colocou o teclado do computador de lado e segura uma caixa da Fruit 'n Fibre nas mãos. Ele está comendo seu cereal com ar compenetrado, de olho na tela do computador. Em seguida, ele se levanta, leva sua tigela até a cozinha, lava e retorna para sua mesa.
Vinha observando o ritual que ele faz para tomar o café há algumas semanas e agora recebi um e-mail de um leitor dizendo que, no banco onde trabalha, as gavetas das mesas de seus colegas não têm mais arquivos. Estão cheias de caixas de cereais. "O que está acontecendo?". É uma pergunta interessante. Não faz sentido comer cereais no trabalho. É preciso cerca de 90 segundos para preparar e comer uma tigela de Bran Flakes em casa. A geladeira está à mão, assim como a lavadora de pratos. No trabalho é preciso fazer uma caminhada até a geladeira e você mesmo tem de lavar a tigela.
O fato de os trabalhadores contornarem essas dificuldades para comer Cheerios em suas mesas sugere que a barreira mental entre o tipo de coisas que fazemos em casa e as coisas que fazemos no trabalho entrou em colapso. Ao longo da última década tem havido uma marcha progressiva e constante de objetos, atividades e emoções dos lares para as baias, de modo que hoje quase nada pertence mais totalmente ao lar. Os trabalhadores de escritório modernos podem realizar todos os seus rituais matinais mais íntimos no trabalho. Eles aparecem de calças de ginástica, tomam uma ducha, escovam os dentes e colocam a maquiagem.
Os escritórios servem também de guarda-roupas e lavanderias, com toalhas úmidas, roupas reservas e sapatos cuidadosamente colocados pelos cantos. Na chapeleira atrás de mim há um paletó risca de giz, duas camisas, uma calça de algodão cáqui e camisetas para uma semana pertencentes ao novo funcionário.
Terminados os cuidados com a aparência, as pessoas se acomodam em suas mesas, onde são recebidas por brinquedos empalhados, tapetes, buquês de flores e, é claro, fotografias dos filhos e animais de estimação. Mesmo essas evidências da vida doméstica não são suficientes. Agora, os próprios filhos aparecem no escritório regularmente e algumas companhias permitem até mesmo cachorros.
As diferenças entre o que vestimos e como nos comportamos em casa e no trabalho vêm diminuindo consistentemente. Podemos ser ainda um pouco mais educados no trabalho, mas chorar e gritar já são coisas perfeitamente aceitáveis, assim como os jeans e as sandálias de dedo. É até mesmo normal dormir no trabalho - isso recebe o nome de power nap (algo como cochilada revigorante) e uns poucos escritórios instalaram camas ou cápsulas para dormir para facilitar as coisas para nós.
Sexo, drogas e rock 'n'roll também fazem parte da vida no escritório. O primeiro e o segundo são oficialmente proibidos, mas mesmo assim são praticados quando ninguém está olhando. O rock 'n'roll pode agora entrar abertamente no trabalho graças ao iPod, que nos permite passar as horas chatas na companhia de Mick Jagger ou algo parecido.
A tecnologia também torna mais enevoada a divisão de outras maneiras: assistimos televisão em nossas mesas, ficamos sabendo quem fez o quê na noite passada pelo Facebook, fazemos nossas compras pela internet e recebemos os talões de prestação confortavelmente pelo correio. Não sobra nada que ainda fazemos em casa, mas não fazemos no trabalho? Procurei com afinco e encontrei menos de meia dúzia de coisas. Ainda existe um tabu com a nudez no escritório e não me lembro até hoje de ter visto alguém trabalhando de pijamas. Também nunca vi ninguém pintando um quadro no trabalho, embora quase ninguém mais faça isso em casa também.
Há apenas uma coisa que as pessoas escolhem fazer em casa mas não no trabalho: dar à luz, muito embora logo isso também possa acontecer. Recentemente, uma amiga me mandou um e-mail sobre um problema de trabalho enquanto estava sendo conduzida para a sala de parto. Portando, ter um filho no trabalho parece ser o próximo passo lógico. Há uma atividade, porém, que fazemos cada vez menos no local de trabalho - trabalhar. Mas isso faz sentido: não há por que trabalhar no escritório quando podemos fazer isso com toda conveniência em casa.
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*Lucy Kellaway é colunista do "Financial Times". Sua coluna é publicada às segundas-feiras na editoria de Carreira
Fonte: Valor Econômico online, 05/09/2010

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