domingo, 5 de setembro de 2010

Enganados pela mente

Pesquisadores se dedicam cada vez mais ao estudo de fenômenos
que parecem sobrenaturais,
como o déjà-vu* e a sensação de deixar o próprio corpo.
Explicação pode estar em pequenas falhas temporárias do cérebro


“Será que estou ficando louco?” É a primeira pergunta que passa pela cabeça de pessoas que, em um momento ou outro, experimentam sensações desconcertantes. Pode ser a impressão de que há mais alguém em uma sala onde se está sozinho, a percepção de que a alma está saindo do corpo ou a certeza de que uma cena em ação já ocorreu.

Fenômenos como o famoso déjà-vu ou a experiência extracorpórea costumam ser associados a eventos fantasmagóricos, experiências espirituais ou a uma boa dose de imaginação. Porém, eles despertam o interesse dos cientistas que não se conformam com explicações sobrenaturais e, cada vez mais, estudam os mecanismos do cérebro responsáveis por esses acontecimentos.

Embora não tenham elucidado completamente os fenômenos, os pesquisadores estão se aproximando das respostas. O segredo está no cérebro, onde “curtos-circuitos” eventuais interrompem ligações elétricas e provocam falhas temporárias. Na maioria das vezes, esses efeitos são tão pouco frequentes que não deixam mais que um incômodo em quem os sente. Mas há situações dramáticas. Às vezes, as experiências se repetem tanto que a pessoa precisa fazer tratamentos terapêuticos para lidar com elas.

O médico Chris Moulin, chefe de um laboratório de estudos da memória da Universidade de Leeds, no Reino Unido, relata o sofrimento de um paciente que tinha um déjà-vu atrás do outro. “O paciente não só genuinamente acreditava que me tinha me encontrado outras vezes, como dava detalhes específicos sobre os dias e os lugares onde ocorreram esses eventos dos quais ‘se lembrava’’’, conta Moulin. Ele parou até de assistir à televisão, porque tudo parecia repetido.

Os estudos sobre esses fenômenos não servem apenas para matar a curiosidade. Eles podem ajudar, por exemplo, na compreensão dos tipos de memória armazenados pelo cérebro. Leia a seguir o que a ciência já sabe sobre três experiências recorrentes que vêm sendo estudadas em universidades de todo o mundo.

Filme reprisado

Muita gente já passou pela experiência de chegar a um lugar e ter a impressão de que já esteve lá antes. Esse sentimento misterioso, conhecido como déjà-vu, ocorre quando uma situação parece muito familiar, mesmo sendo evidente que ela não poderia ter ocorrido anteriormente. Por muito tempo, essa horripilante experiência foi atribuída a muitas coisas, de casos paranormais a distúrbios visuais. Porém, recentemente, com um maior número de cientistas estudando o déjà-vu, novas teorias surgiram e, embora não o tenham decifrado com exatidão, já se tem uma ideia maior do que é fenômeno.

Durante muitos anos, a explicação científica mais aceita era a de que o déjà-vu estava associado ao campo visual. Pensava-se que as imagens capturadas por um dos olhos chegava com atraso, formando-se no cérebro em frações de segundo depois das imagens identificadas pelo outro olho. Com isso, a sensação era a de estar vendo a mesma coisa pela segunda vez.

Era uma boa explicação, até que um grupo de pesquisadores da Universidade de Leeds, no Reino Unido, encontrou um deficiente visual que já havia passado pela experiência com base em cheiros, sons e toques que pareciam familiares. “O atraso óptico é uma teoria antiquada, mas amplamente divulgada. Mas o fato de um cego ter déjà-vu fornece uma forte prova de que isso não pode ser a explicação”, disse ao Correio o pesquisador Akira O`Connor.

Ele e outros cientistas da Universidade de Leeds decidiram, então, estudar o fenômeno. Os pesquisadores induziram a sensação em laboratório, hipnotizando voluntários. Em um dos testes, foi apresentada aos participantes uma lista de palavras que deveriam ser memorizadas. Depois, os voluntários foram hipnotizados e estimulados a esquecê-las. Mas, ao acordar, os participantes foram apresentados novamente à lista de palavras e quase todos afirmaram que passaram pela sensação de déjà-vu, pois tinham a impressão de que já haviam lido essas palavras antes, embora não soubessem quando e onde.

Segundo O`Connor, quando uma pessoa reconhece um objeto ou uma cena familiar, ocorrem dois processos. Primeiro, o cérebro procura na memória algo semelhante aos conteúdos observados. Em caso de resposta afirmativa, outra parte do cérebro identifica o objeto ou o acontecimento como sendo recorrente. O déjà-vu ocorre quando a resposta vem truncada por causa de um engano cometido pelo cérebro. Esse erro provavelmente ocorre no lobo temporal — região ligada à formação das memórias. Na pesquisa, os voluntários foram monitorados por exames de imagem. Quando tinham a sensação do déjà-vu, essa área cerebral ficava mais ativa.

Tem alguém aí

Parece um filme de terror. A pessoa sente a presença de alguém, mas, ao olhar para trás, não vê nada. No passado, botava-se a culpa nos fantasmas, mas agora a ciência já sabe que o responsável pela desagradável sensação é uma atividade anormal processada em uma região específica do cérebro. O caso de uma jovem de 22 anos sem histórico de distúrbios psiquiátricos e que fazia uma cirurgia para se curar de crises epilépticas foi a prova de que o “efeito sombra” nada mais é que uma enxurrada de estímulos elétricos cerebrais.

A descoberta foi descrita na revista especializada Nature e é de autoria do pesquisador Olaf Blanke, o mesmo que estudou a sensação extracorpórea por meio da realidade virtual. Segundo ele, durante a cirurgia, feita com a paciente acordada, quando os médicos estimulavam com eletrodos uma região chamada junção temporopariental esquerda, a mulher descrevia a presença de uma “sombra”, que parecia imitar seus movimentos corporais.

Quando a paciente estava deitada, a estimulação dessa área do cérebro a levou a sentir que havia alguém atrás. Ela descreveu essa pessoa como alguém jovem, mas de sexo indeterminado. “Uma sombra que não falava nem se movia, e cuja posição, atrás dela, era idêntica à da própria paciente”, na definição dos pesquisadores que participaram do estudo. Já quando a paciente se levantava e se preparava para se sentar, ela sentia que a figura também estava fazendo o mesmo movimento. A conclusão dos pesquisadores foi a de que a mulher estava experimentando uma percepção do próprio corpo.

“Essa estranha sensação de que alguém está perto quando na verdade não há ninguém já foi descrita por pacientes neurológicos e psiquiátricos, assim como por pessoas saudáveis. Mas até agora não entendíamos como essa ilusão formava-se no cérebro”, disse Blanke ao Correio. Segundo ele, a junção temporopariental é conhecida por estar envolvida na criação do conceito do “eu” e na distinção entre “eu” e “o outro”. Quando estimulada, essa região interfere na habilidade da pessoa em reconhecer o próprio corpo. “Acho que nossa descoberta é um passo no entendimento do mecanismo por trás de manifestações psiquiátricas como paranoia e mania de perseguição”, diz o cientista.

A alma sai do corpo?

É comum ouvir relatos de pessoas que acreditam já terem “saído do próprio corpo”, uma experiência geralmente associada a fatores místicos e religiosos. Mas a ciência conseguiu provar que o fenômeno tem uma explicação lógica. Em 2007, pesquisadores publicaram na revista Science estudos que mostram ser possível, inclusive, induzir essa sensação em pessoas saudáveis, que nunca pensaram que suas almas haviam se separado do corpo.

Depois de fazer uma experiência com a tecnologia da realidade virtual, os cientistas afirmaram que uma desconexão entre os circuitos cerebrais que processam as informações sensoriais pode ser responsável pela sensação de sair do corpo. De acordo com eles, essa experiência costuma ocorrer em usuários de drogas, epilépticos em convulsão e portadores de outros tipos de distúrbio cerebral.

O cientista Henrik Ehrsson, da Universidade College London, no Reino Unido, e a equipe de Olaf Blanke, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, utilizaram câmeras e óculos de realidade virtual para exibir aos voluntários imagens de seus próprios corpos a partir da perspectiva de alguém posicionado atrás deles. Ao mesmo tempo, os pesquisadores tocaram os corpos dos voluntários, tanto os reais como os virtuais.

Os voluntários do estudo de Ehrsson viram, por meio dos óculos especiais, imagens gravadas por câmeras. No trabalho de Blanke, o vídeo foi convertido em simulações computacionais semelhantes a holografias. O primeiro grupo movimentou um pino de plástico logo abaixo das câmeras, enquanto os voluntários eram tocados no peito no ponto correspondente. Questionários feitos em seguida indicaram que os voluntários sentiram que estavam sentados no local em que estavam as câmeras e observavam diante de si um manequim ou um corpo que pertenceria a outra pessoa.

“Esse experimento sugere que sentimos que nosso ‘eu’ está localizado onde estão nossos olhos”, afirmou Ehrsson, no estudo. A equipe do cientista sueco também fez os voluntários olharem um martelo que era balançado em direção a um ponto abaixo da câmera, como se estivesse batendo em uma parte do corpo virtual fora do campo de visão. Medições de condutividade da pele, que refletem respostas emocionais como o medo, indicaram que os voluntários sentiram que seu ‘eu’ havia deixado o corpo físico e se movido para o corpo virtual.

Ambos os estudos concluíram que o conflito multissensorial é o mecanismo-chave na base da experiência extracorpórea. “As disfunções do cérebro que interferem nos sinais de interpretação sensoriais podem estar na origem de certos casos clínicos de experiência extracorpórea. No entanto, não sabemos se todas essas experiências são provenientes das mesmas causas”, disse Blanke ao Correio.

Nota:
Déjà vu em francês significa " já visto ". O termo foi aplicado por Emile Boirac (1851-1917) , que tinham fortes interesses em fenômenos psíquicos. Boirac dirige nossa atenção para o passado.
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Reportagem: Paloma Oliveto
Fonte: Correio Braziliense online, 05/09/2010

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