MARCELO GLEISER*
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Cientistas às vezes têm de aceitar que não veem o filme inteiro.
O desafio é destrinchar a história com o que temos
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RECENTEMENTE, GENETICISTAS obtiveram um resultado notável: as esponjas (forma de vida multicelular mais antiga que conhecemos) podem ter entre 18 mil e 30 mil genes, números comparáveis aos dos humanos, das moscas e de incontáveis outras espécies.
Como as esponjas existem há pelo menos 500 milhões de anos, muitos pensam que elas formam o tronco da árvore da vida que leva aos animais. Não somos, portanto, apenas descendentes dos macacos. Nós e todas as outras espécies viemos das esponjas, primas dos objetos porosos que usamos no banho.
Estranho imaginar que seres tão simples sejam nossos ancestrais.
Afinal, esponjas não têm pele ou neurônios. No entanto, sabe-se que as esponjas têm genes responsáveis tanto pelas proteínas usadas na comunicação entre as células nervosas, por exemplo. Está tudo lá, numa espécie de hibernação genética.
A descoberta incita uma questão importante. De onde veio todo esse aparato genético das esponjas?
Se adotarmos uma postura reducionista para a evolução da vida, é natural supor que as primeiras formas de vida eram simples. Isto é, com um número reduzido de genes.
O pulo em complexidade de alguns genes para milhares não é trivial.
Criacionistas vão adorar. "Como essa complexidade foi atingida sem a intervenção de um engenheiro?"
Prevejo que argumentos criacionistas, como o baseado na existência implausível do olho, serão revisados para incluir a complexidade genética das esponjas, degraus abaixo na escada evolutiva.
Biólogos não terão dificuldade para rechaçar esse argumentação.
Não se pode usar dados necessariamente incompletos para se construir um argumento de caráter definitivo.
O processo de investigação científica é cumulativo. Darwin foi atacado pelos "elos perdidos" no registro de fósseis. Seus críticos queriam uma progressão continua das formas de vida, feito num filme, sem os pulos que necessariamente existem.
Esse tipo de continuidade é impossível por ao menos duas razões.
Primeiro, é inocente querer que os fósseis de todas as espécies que existiram no passado tenham sido preservados até o presente. Alguns são destruídos e outros não se fossilizaram. Mesmo que todos tivessem sido fossilizados, achá-los seria impossível, já que jazem espalhados pelas entranhas da Terra.
Segundo, devemos considerar a hipótese do equilíbrio pontuado de Niles Eldredge e Stephen Jay Gould, segundo a qual a evolução da vida não pode ser separada da dramática história da Terra.
Cataclismos globais, como a queda de um asteroide ou grandes erupções vulcânicas, redefiniram a evolução da vida. É de se esperar que existam descontinuidades. Achar que a complexidade das esponjas é evidência de algum criador é como pegar um filme na metade e não admitir que metade já passou.
Como não têm esqueleto, as esponjas não se fossilizam. É plausível que tenhamos perdido muito do filme. Outras formas de vida, com genética mais simples, talvez protoesponjas, devem ter existido. Como em arqueologia ou em cosmologia, temos de aceitar que nunca veremos o filme inteiro. O desafio é destrinchar a história com as partes que conseguimos ver. A beleza da ciência é que podemos fazer isso.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"
Fonte: Folha online, 05/09/2010
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