terça-feira, 7 de setembro de 2010

O fator bem-estar do brasileiro

Ilan Goldfajn*
O leitor sabe o que é "feel good factor"? Tem-se falado muito nisso ultimamente. Fui investigar... no Google. Descobri que é uma música de James Brown, um salão de beleza e até uma firma inglesa de terapias diversas. Encontrei também a definição que procurava: é a sensação do bem-estar do cidadão em função do estado da economia. Os números do PIB divulgados na sexta-feira não deixam dúvida quanto ao potencial "fil-gud-féctor" do brasileiro. A demanda doméstica (consumo mais gastos do governo mais investimento) já cresce há cinco trimestres ao redor de 8% ao ano. Uma parte dessa demanda está sendo atendida pelas importações crescentes. Outra parte é atendida por aqui mesmo, o que está levando o PIB a crescer pelo menos 7,5% este ano (e estimamos quase 5% no ano que vem). Esse crescimento é sustentável?
Não vou entrar aqui na interminável discussão sobre qual é o produto potencial da economia. Os economistas usam o conceito de produto potencial para estimar se, em determinado momento, a economia está crescendo mais ou menos do que o sustentável (para evitar o "voo da galinha", aquele que termina logo). Mas o público, em geral, não gosta. Identifica a palavra "potencial" como um limite inventado pelos economistas, que define o que não pode ser alcançado de uma forma abstrata e, para alguns, arbitrária. Na verdade, não é um limite arbitrário nem imutável. É a melhor estimativa do potencial de crescimento do país a partir de escolhas da sociedade - quanto investir para o futuro versus quanto gastar hoje; quanto dedicar à educação do futuro trabalhador; quanto se preocupar em estar fazendo o melhor, em vez de, por exemplo, ser grande e influente; ou, até, como conciliar crescimento com outros valores da sociedade.
Hoje a maioria dos economistas identificaria o potencial da economia em torno de 4,5%, alguns estimando menos (em torno de 3,5% a 4%), outros chegando a 5% ao ano. É certamente possível crescer mais do que o potencial de hoje. Mas é preciso ir além de querer (ou simplesmente gastar mais): tem de investir, educar, reformar, mudar o que não faz sentido, "mas sempre foi assim", enfim, alterar o que é necessário. Nem sempre o bem-estar se eleva de imediato, mas sim no futuro.
Prefiro remeter à discussão equivalente, mas menos conturbada. A trajetória atual está gerando (ou poderá gerar) sintomas indesejados? Uma economia muito aquecida tem uma demanda crescendo muito mais que a oferta, o que gera uma expansão das importações sistematicamente mais forte que as exportações, além de futuras pressões inflacionárias.
Vamos aos últimos números. O PIB do Brasil cresceu 1,2% (+5,1% anualizado) no segundo trimestre, na comparação com o primeiro trimestre; e 8,8%, ante o mesmo trimestre de 2009. Crescimento ainda forte, mas abaixo do crescimento da demanda interna, de 1,9% (ajustado sazonalmente), o que representa 7,9% de aumento, em termos anualizados. A diferença tem sido satisfeita por um crescimento acelerado das importações, que aumentaram 4,4% no trimestre (anualizado, 18,9%), enquanto as exportações cresceram "apenas" 1% (anualizado, 4,1%).
Houve uma desaceleração em relação ao começo do ano. O crescimento do primeiro trimestre tinha sido num ritmo chinês: 2,7%, em relação ao trimestre anterior (11,3% anualizado!). Olhando mais granularmente, os meses de abril a junho indicam crescimento perto de zero, com retomada em julho, logo após o término da Copa do Mundo. Com o acumulado de crescimento até agora, mesmo se a economia não vier a crescer no restante do ano, o PIB chegaria a 7% em 2010. Como a economia está crescendo neste segundo semestre, devemos observar um crescimento em torno de ou maior que 7,5%.
A decomposição do crescimento do PIB (pela ótica da demanda) é esclarecedora quanto ao futuro. Os gastos do governo no PIB aumentaram novamente de forma acelerada (+2,1% em relação ao primeiro trimestre, 8,5% anualizado). É uma tendência que já ocorre há anos, se não décadas. O consumo das famílias também tem crescido aceleradamente, resultado do maior poder de compra da população (32 milhões de pessoas ingressaram nas classes A, B e C nos últimos anos), em consequência do aumento dos salários, empregos e da maior disponibilidade do crédito. Os investimentos devem seguir crescendo, para satisfazer os desejos de consumo dessa nova classe média, mas também atingir os desafios proporcionados pelo pré-sal, pela Copa do Mundo e a Olimpíada. Esse crescimento acelerado simultâneo dos gastos, do consumo e do investimento é possível? Ou vai esbarrar em gargalos como financiamento, falta de mão de obra especializada e infraestrutura?
Para a frente, estimamos um financiamento externo (equivalente ao déficit em conta corrente) da ordem de 2,5% do PIB neste ano, atingindo 3,7% no ano que vem e um pico de 4,7% em 2016, consistente com o crescimento nos moldes atuais. É o limite do déficit que nos parece financiável. Acima desse valor, o déficit deve gerar desconfortos sérios internos (mais controles e barreiras) e restrições externas (menos financiamento) em razão da memória das crises do passado. E esse limite só será respeitado se a política fiscal abrir algum espaço para realocar gastos correntes para investimento público (1% a mais do PIB) e a política monetária (ou o desaquecimento global) conseguir desacelerar o crescimento da demanda para níveis mais moderados. Ultrapassar esse limite significará abortar o crescimento ou voltar à inflação.
Nada disso é determinístico. Há opções. Um ajuste mais intenso na política fiscal, por exemplo, abre mais espaço. Mas o "feel good factor" é algo que depende de manutenção de políticas consistentes no futuro. Se não, o bicho (a falta de crescimento ou a inflação) come.
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*ECONOMISTA-CHEFE DO ITAÚ UNIBANCO
Fonte: Estadão online, 07/09/2010

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