sábado, 4 de setembro de 2010

“Todo brasileiro se sente uma ilha de democracia racial cercada de racistas”

Entrevista: Lilia Moritz Schwarcz*

Por cerca de cem anos, intérpretes do Brasil encheram milhares de páginas na tentativa de definir o caráter nacional. Neste século, à medida que o país se molda à identidade de ator global emergente, pesquisadores além das fronteiras brasileiras passam a se interrogar sobre esse problema, que tanto preocupou no passado pensadores tão distintos como Sílvio Romero, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Raymundo Faoro. No dia 17 de agosto, o historiador americano Robert Darnton publicou em seu blog na revista The New York Review of Books um diálogo sobre “the character of this new great power” (o caráter desta nova grande potência, no caso o Brasil). Sua interlocutora era a brasileira Lilia Moritz Schwarcz, definida como “uma das melhores historiadoras e antropologas do Brasil”, além de proprietária da editora Companhia das Letras com o marido, Luiz Schwarcz. Ambos haviam iniciado a troca de ideias durante a Festa Literária de Paraty (RJ), em julho, e a conversa voltou-se quase naturalmente para as relações raciais no país.
Poucas profissionais de ciências humanas se empenham como Lilia na tentativa de estimular um debate interdisciplinar sobre a consolidação da identidade nacional a partir do tema das raças – um dos objetos da curiosidade de Darnton no diálogo da The New York Review of Books. Entre terça e quinta-feira, esse foi um dos focos da antropóloga em um curso ministrado no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob o título Debates em Área de Fronteira: História, Antropologia, Literatura e Artes. Na quarta-feira, Lilia falou sobre esse e outros temas em entrevista exclusiva a Zero Hora.
A seguir, uma síntese:

Zero Hora – Brasileiro gosta de história?
Lilia Moritz Schwarcz – Durante muito tempo se disse que os brasileiros não gostavam de história. A universidade brasileira ficou bastante enquistada no seu próprio Olimpo, produzindo livros para ela mesma. Não há cultura que não goste de pensar em sua história, haja vista que não há povo que não crie seus mitos. O que são mitos senão uma forma de pensar a origem, o nascimento? O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss disse que a história, como disciplina, é o mito do Ocidente. Nós somos povos de história. Pensamos em amanhã, ontem, causa, efeito. Lemos jornais todos os dias, e, como diz Benedict Anderson, o jornal é uma grande ilusão, porque o abrimos e temos a certeza de saber tudo que está acontecendo aqui e na China. Consumimos essa ideia, somos uma sociedade da temporalidade. Dizer que o Brasil não gosta de história é diagnosticar um problema que, talvez, possa estar nos historiadores. Impulsionada por pessoas que não são historiadores, como jornalistas e divulgadores, a história ganhou a área dos livros mais vendidos.

ZH – Isso é positivo?
Lilia – Na minha opinião, isso é bom porque deu um novo alento à historiografia nacional, que é de grande qualidade, mas que precisava sair de seus muros e ganhar um outro público. Isso também deu um novo fôlego à indústria editorial, que passou a procurar por esses autores. Escrevi um livro, As Barbas do Imperador, que originalmente era uma tese de livre-docência. Retirei um capítulo mais teórico, publiquei-o numa revista acadêmica, alterei muita coisa no texto principal. O livro não foi um best-seller como outros, mas jamais vi uma tese vender 75 mil cópias. Coordeno com Elio Gaspari uma coleção chamada Perfis Brasileiros, da Companhia das Letras, e os livros vendem muito bem. E nem falo nos livros de Fernando Morais, Ruy Castro e Eduardo Bueno. Há vários públicos, e cabe aos historiadores tomar parte nesse novo movimento.

ZH – Qual é a atitude da academia diante desse fenômeno?
Lilia – É preciso falar em “atitudes” e “academias”, no plural. De um lado, balançou positivamente. Alguns autores estão escrevendo de forma mais fácil. Não que tenham sido condicionados pelo público, mas foram animados por ele. A historiadora Laura de Mello e Souza acaba de entregar os originais da biografia de Cláudio Manuel da Costa (poeta barroco do século 18, participante da Inconfidência Mineira) para a coleção Perfis Brasileiros. É uma coleção sem nota de rodapé, na qual pedimos que os escritores não simplifiquem, mas tenham recursos de linguagem adaptados ao público não especializado. E a Laura, que é sem dúvida uma das figuras de ponta dessa historiografia no que se refere a pesquisa, rigor e apuração das fontes, ficou entusiasmada com essa perspectiva e vai lançar esse livro. A obra é uma beleza, sem concessões, mas voltada para o público mais amplo. Há reações como a de Mary del Priore, que saiu da academia e se dedica com muita maestria a produzir livros até por encomenda. Há um terceiro tipo de reação, negativa, que se diz contrária a se pautar pelo mercado e pela vendagem. De toda maneira, nas três reações há um lado positivo para a academia porque expressam um movimento. Quando comecei minha carreira acadêmica, a única possibilidade era seguir na universidade e dialogar com os pares. Os historiadores e cientistas sociais estão fortalecendo a universidade e seus locais de debate ou entrando na discussão pública, inclusive pelos jornais.

ZH – A sua área de origem é a história, mas a maior parte de sua carreira acadêmica foi feita nos marcos da antropologia. Como vê hoje a possibilidade de diálogo entre diferentes disciplinas em ciências humanas?
Lilia – O curso que estou dando aqui em Porto Alegre é justamente voltado para novos desafios metodológicos. A resposta foi muito positiva. As pessoas estão mais motivadas a cruzar fronteiras e a se vitaminar com a fronteira. Na aula de hoje, eu disse: “Não vou aqui advogar que história é literatura. História não é literatura. A questão é outra: de que maneira as ciências sociais e humanas podem ter, de um lado, um olhar diferente sobre a literatura e, de outro lado, de que maneira a literatura serve para nós como um documento?” A pergunta é: como fazer boa história sem fazer má crítica literária e vice-versa? É um caminho difícil, mas que responde a uma certa crise disciplinar na qual as fronteiras estão muito borradas. Houve um momento em que nos guiávamos por divisões dicotômicas, como a de que a história lida com o tempo, e a antropologia, com o presente. Agora, sabemos que há muito presente no passado (porque voltamos ao passado com perguntas do presente) e que não há um presente alheio às questões do passado (porque ninguém chega ao presente com olhos limpos). Na história da arte, houve um momento em que se era formalista ou historicista, ou seja, se pegava somente convenções, escolas, tradições e estilo ou se via a obra de arte como reflexo de seu contexto. Agora, o grande desafio é pensar a dialética entre essas oposições. A história reflete o seu momento e também produz o seu momento. O mesmo ocorre com a literatura. O grande problema dos cientistas sociais ao lidar com literatura é que a tomam como um reflexo imediato e mecânico do contexto, quando o que é bonito na literatura é que, às vezes, ela produz contextos.

ZH – No caso do Brasil, quais livros teriam produzido seus contextos?
Lilia – A bola da vez é Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Você pode interpretar Casa-Grande e Senzala como reflexo dos anos 30, com sua crítica aos modelos deterministas raciais, sua reinvenção do mestiço como grande fortuna nacional típica do Estado Novo. Ou como reflexo do modernismo, que, como diz o professor Antonio Candido, redescobre o negro e a mestiçagem que haviam sido esquecidos durante o Império. Mas ninguém pode negar que Casa-Grande e Senzala produziu o Brasil mestiço. Não é um mero reflexo.

ZH – A senhora participou, na Festa Literária de Paraty, em julho, de debates comemorativos do centenário de Gilberto Freyre. Como vê a recepção da obra dele hoje? Estamos nos aproximando de uma compreensão, digamos, mais equilibrada de seu legado?
Lilia – De um lado, sim. A Flip teve um lado bacana de não ter sido uma homenagem no sentido óbvio. Da primeira à última mesa (foram cinco no total), foi enfatizada a visão crítica. Houve um grande elogio do método, da originalidade no uso das fontes, da interpretação do Brasil como equilíbrio de antagonismos e da maneira como, em algumas obras, praticou o estilo do ensaio, dando a elas a imagem de uma incompletude totalmente proposital. Nas três grandes obras – Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso –, o que impera é um Gilberto Freyre nada dogmático e que permite a dúvida. Por outro lado, há um Gilberto Freyre do último momento, nos livros mais tardios, que faz por encomenda do Ministério de Ultramar do governo de António de Oliveira Salazar (ditador de Portugal entre 1932 e 1968), como O Mundo que o Português Criou, que são uma defesa deslavada do colonialismo português diante dos movimentos de libertação das colônias. Esses livros foram usados para conter esses movimentos, praticando a ideia de uma vocação portuguesa para a liberdade, a mestiçagem e a harmonia entre as classes. Freyre corre o perigo de ser conhecido a partir de uma obra, Casa-Grande e Senzala, que é, de fato, o seu grande livro. Existe uma metáfora segundo a qual a ostra produz pérola e, quando doente, produz pedras. Ele era contraditório e assumia sua contradição. Para ele, o português era aventureiro e também violento. O melhor de Gilberto Freyre é quando ele fornece os dois lados o tempo todo. O pior, na minha opinião, é quando ele usa a mestiçagem para explicar que existem as ditaduras. Sou avessa a grandes comemorações porque, às vezes, tendem a gerar essencializações. Talvez tenhamos de sair deste Ano Gilberto Freyre para pensar nele como uma obra.

ZH – O Ano Gilberto Freyre coincide com o grande debate nacional sobre as cotas raciais nas universidades. Esse debate é positivo?
Lilia – A máxima de Florestan Fernandes segundo a qual existe um preconceito retroativo no Brasil (o preconceito de ter preconceito) continuava forte até 10 anos atrás. Em 1988, no Centenário da Abolição, organizei juntamente com um grupo da USP uma pesquisa sobre preconceito racial no Brasil. A primeira pergunta era: “Você tem preconceito?”. Não usávamos o qualificativo “racial”. Entre os entrevistados, 96% responderam “não”. A segunda pergunta era: “Você conhece alguém que tenha preconceito?”. Noventa e nove por cento das mesmas pessoas disseram “sim”. Quando perguntamos qual era o grau de relacionamento que tinham com essas pessoas, os entrevistados diziam que eram amigos próximos, pais, irmãos. A conclusão informal da pesquisa era de que todo brasileiro se sente uma ilha de democracia racial cercada de racistas por todos os lados. Houve um momento na nossa história em que esse tema era um tabu na acepção de Lévi-Strauss, ou seja, que não se discute porque dá azar. Isso é um grande problema. Não poder falar de algo é um problema maior do que praticá-lo. As cotas raciais serviram, no mínimo, para pedir que as pessoas discutissem o problema. Se fosse só por isso, já seria muito bom. Fizemos um censo racial na USP que foi considerado racista por perguntar qual era a raça das pessoas. Tivemos uma modalidade de resposta muito recorrente: “Eu não tenho esse problema”. Então quem tem esse problema? Os negros?

“Um Jantar Brasileiro”,
aquarela sobre papel de Jean-Baptiste Debret (1827),
cujas obras são grande fonte de compreensão dos costumes do Brasil no século 19

ZH – Qual é a sua posição sobre as cotas raciais?
Lilia – Sou favorável a ações afirmativas, que estamos fazendo na USP. Acredito em discutir Áfricas nas escolas, fazer com que a população negra tenha autoestima. Num trabalho em que entrevistamos crianças, elas choram ao dizer que não podem ser anjos nem Branca de Neve nas dramatizações. Não há heroínas negras. Não quero dizer que não se pode estudar história da Europa. Mas acho que, se vamos estudar França e Inglaterra, estudar as várias Áfricas também é interessante e pode mudar a autoestima dessa população. Sou favorável a bônus, e não cotas. A ideia de cotas traz sempre à tona o tema correto do mérito e da meritocracia. Concordo que raça é um conceito destruído pela biologia. Mas a nossa sociedade constrói conceitos pragmáticos e não biológicos. Sei que raça não existe, mas é indiscutível que essa ideia é reinventada pela sociedade e ganha uma feição primordial. Na questão do mérito, concordo que é preciso estabelecer igualdade numa sociedade de iguais. Mas a interrogação que fica parte do fato de que as pessoas que vão fazer vestibular não são iguais. A universalidade é formal, na minha opinião. Em São Paulo, os melhores colégios são de elite, privados, frequentados por pessoas que fazem escolas de idiomas. Há também a população que vem de escola pública, trabalha o dia inteiro e não pode cursar idiomas. Cadê o universal? Sim, você tem populações que chegarão à universidade com a mesma formação formal, mas que, na prática, não têm a mesma formação.

ZH – Qual é a diferença entre cotas e bônus?
Lilia – Pelo sistema de cotas, essa população negra, de baixa renda, vai entrar na universidade mesmo que não se atinja o quantum necessário. As vagas são reservadas. Aí se coloca a questão do mérito. Defendo bônus sociais. Na USP, o aluno que frequentou três anos completos de escola pública tem bônus. Com isso, aumentamos a população negra de 7,5% para 12% na USP. Não é o paraíso, mas, na universidade que tinha fama de ser a mais elitista, é melhor. No vestibular, matematicamente, temos indivíduos que entrarão por pontos e outros que não entrarão. Mas há uma grande população intermediária, para a qual é preciso adotar um critério de desempate. Se tenho um aluno de escola privada, cursinho, viajou, pais que leem, e outro de escola pública, pais iletrados, com 98 pontos, quem vai passar? Pelo sistema de bônus, o que veio de escola pública passa.
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POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Fonte: ZH online, 04/09/2010

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