Georges-Michel Darricades*
Há dois tópicos fundamentais nos quais podemos abraçar a obra de Camus: o absurdo e a rebeldia. De alguma maneira, ele gostava de ordenar seus ciclos, denominados assim por ele. Desta maneira, na série “Absurdo”, incluía O estranho, O mito de Sísifo, Calígula e O mal-entendido; e na série “Rebeldia”, estavam A peste e O homem rebelde.
Há muitas páginas de Camus que ultrapassam a sucinta relação que faço para dar consistência ao artigo. Aí estão Avesso e Direito, Casamentos, O verão, no plano dos ensaios; A queda, O exílio no reino da narrativa; O mal-entendido, O estado de sítio, Os justos, no teatro. E outros textos como Atualidades e Cadernetas, que estão mais perto da contingência e do devir dos acontecimentos que lhe tocou viver.
De todas formas, é imprescindível advertir que a obra de Camus é um todo, talvez evolutivo ao longo dos anos. E embora escrevesse muito bem, estava mais próximo da rigorosidade e do pensamento que da pura estética e da literatura convencional. Por isso é recomendável que o leitor que se embrenhe em suas obras, leia-as completas para poder desentranhar completamente todos os escritos do autor argelino-francês. Bem, veremos então o que corresponde ao título desta coluna.
O ABSURDO
L’Etranger, sua primeira “narração” (tal como denominava seus relatos já que ele não os chama de “novelas”) nem sequer no francês há uma etimologia clássica que permita entender a partir do título o que nos quer propor em seu desenvolvimento. Menos ainda em castelhano, onde a maioria das edições vêm como O estrangeiro. A acepção correta é O estranho, que certamente dá sentido aos que Camus nos quer dizer.
Tudo em O estranho está repleto de absurdo. Primeiro a personagem Mersault, que é assim, estranha, claro ao mundo que lhe tocou viver, às suas convenções; simplesmente viveu, sem questionar-se e evitando as grandes perguntas da existência. É um jovem funcionário de um escritório com uma vida rotineira que não é quebrada pela morte de sua mãe, nem pelo amor de sua amante, Maria . No entanto, agrada-lhe a boa vida e as mulheres. Por outro lado, afasta-se das normas que a sociedade lhe impõe sem importar se realmente têm uma base sólida além das aparências. Nesse aspecto o protagonista é estranho, mas não mais do que outros como Pied Noire e muitos jovens da época. A circunstância da morte de sua mãe, com a qual começa o relato, é da maior importância para o desenvolvimento e desenlace do juízo posterior.
Desta maneira o crime também é um absurdo, tal como ele mesmo propõe no decorrer do julgamento: “é que fazia muito calor” e, claro, as circunstâncias do desentendimento com o árabe que mata são uma série de lampejos; e aqui vale a palavra que não faz mais que confundi-lo e exacerbar sua reação. Já dissemos o sol brutal que faz brotar a transpiração que cai como um véu sobre seus olhos, o ardor dos raios luminosos do mar, a areia que queimava a cinquenta graus e, o mais relevante, o reflexo da arma branca que o árabe tinha em sua mão. Tudo isso e o medo de ser atacado faz com que ele aperte o gatilho de seu revólver, quase por inércia.
O juízo foi um absurdo. Desde o primeiro momento não existe nenhuma possibilidade de clemência e muito menos justiça para Mersault. Ele enfrenta juízes com princípios inquestionáveis e que jamais se questionarão sobre o valor dos mesmos. O juiz, o promotor e inclusive o advogado defensor, estão “aureolados” da mesma forma convencional, por isso este estranho que não reconhece estas formas e que, tudo indica carece de amor filial, segundo a visão do tribunal, tramam sua condena à morte; quem não tem razões para viver, não merece viver.
Finalmente, e com isto se copia o pensamento de Camus e se entrelaça com O mito de Sísifo, inicialmente o protagonista é prisioneiro da rotina cotidiana, para depois conquistar a liberdade, recusando princípios autoritários da sociedade e seus juízes. E, encarando a morte inevitável pela condenação, escolhe finalmente a rebelião e decide fazer a única coisa que lhe resta: desfrutar o presente.
O absurdo do ensaio O mito de Sísifo (Lhe Mythe de Sisyphe) é considerado um ponto de partida. Trata-se de uma sensibilidade, não de uma filosofia do absurdo. O autor diz isso em parte do prólogo: “aqui se encontrará unicamente a descrição, o estado puro de uma doença do espírito. Nenhuma metafísica, nenhuma crença foi misturada a isso por enquanto”. Sem lugar a dúvidas, O mito de Sísifo é a obra capital do absurdo, pelo menos no que se refere a ensaios. Assim como fez Sartre, ao publicar em 1943 o ensaio O ser e o nada, onde tenta exibir a tese da novela A náusea (1938), Camus publica o ensaio em que tenta resolver os problemas propostos em sua narração O estranho, ambos de 1942. Um dos aspectos relacionados por estudiosos a este ensaio de Camus, é o tema do suicídio, especialmente em sua primeira parte “Um raciocínio absurdo”. A resposta que Camus tenta diante deste problema, é um trabalho sobre o sentimento do absurdo, sua gênese, seu conteúdo. E desenvolve o conceito do tempo como inimigo para entender a ilogicidade do mundo e o espectro da morte como uma certeza.
No entanto, todo este pessimismo tende a apagar-se com o mesmo final que dá a sua obra. Diz: “ devemos imaginar Sísifo feliz ”. E aqui surgem então dois conceitos fundamentais: a consciência e a esperança. Diante deste mundo complexo e incompreensível, diante da cotidianidade da vida, onde tudo acabará com a morte, surge a consciência. Camus diz isso muito bem: “pois tudo começa pela consciência e nada vale mais do que por ela”. O absurdo então não é a sociedade nem o homem, senão a interação entre ambos. “A consciência é um desejo louco de clareza”. Em relação à esperança, trata-se de encontrar outros caminhos; tudo tem um porquê, inclusive o que parece fora da razão. Finalmente, está a rebelião, a ilusão da liberdade (outra obsessão de Camus). Assim o homem se libera e voltamos ao conceito do presente. “O presente e a sucessão dos presentes…é o ideal absurdo”.
A REBELDIA
Vamos começar afirmando que A peste faz uma solidificação de uma moral baseada no conceito da solidariedade e do amor. Ele mesmo diz: “um lugar para o sofrimento dos inocentes”.
Sua grande pergunta é: como reagir diante do mal sem cair em outra forma do mesmo mal?, opondo-lhe a justiça, o amor e a solidariedade humana. As personagens, seres reais que lutam com seus próprios conflitos. Aí está Rieux, o médico que proclama “a salvação do homem é algo muito grande para mim, só me interessa sua saúde”. Também Tarrou, definido como “alguém que quer ser santo sem acreditar em Deus”. Enfim, Rambert, Grand, o jesuíta Paneloux. Entendendo o autor, deveríamos concluir que a peste nunca acaba, só depende das circunstâncias e que o ser humano deixe de lutar contra o absurdo e abandone a rebeldia para que ela volte.
Sigamos com a metáfora. Diante da peste, há três tipos de homens: os obsequentes, que se submetem; os tépidos, que consideram que não vale a pena lutar e que, ao dizer do mesmo autor em Os justos, escolhem só a caridade e renunciam à luta com um certo vestígio escrupuloso; e, finalmente, os lutadores que, além de considerações do intelecto ou de princípios, simplesmente atuam contra a peste. Este último grupo está representado pelos médicos. E além deles está o povo plano, cidadãos comuns e correntes, que o opressor, a peste, despreza por sua indiferença. No entanto, o autor põe em um de seus representantes, Grand, o insignificante, precisamente num plano significativo da crônica. Poderíamos dizer que com esta obra Camus volta a acreditar no homem para lá de suas misérias e suas alturas. Assim diz a Rieux uma vez acabada a epidemia: “no homem há mais coisas dignas de admiração que de desprezo”.
Agora vejamos L’Homme Révolté, O homem rebelado (em castelhano costuma traduzir-se como O homem rebelde, o que é um erro). O significado deste título deveria ser entendido como posicionar-se contra alguma coisa, não no sentido acomodaticio nem menos pejorativo, mas como “ enfrentar”, e enfrentar novamente. O tema da rebelião já o preocupava vários anos antes. Um amigo lhe pedira para escrever algo a respeito para uma compilação sobre o tema, por isso, tinha várias anotações em seu Diário sobre él. Este ensaio, um dos mais importantes de Camus, reflete um antes e um depois em relação aos seus contemporâneos. Significou o início do distanciamento e a polêmica com Sartre. E também recebeu o ataque de boa parte da intelectualidade francesa e da publicação Les Temps Modernes. A pergunta central que o autor propõe nesta obra é: “ o crime é legítimo ?”. Então, denuncia o terrorismo de Estado no nazismo, fascismo e no comunismo, este último através de sua expressão mais depurada, o stalinismo.
O autor se distancia dessa rebelião morna, comum em muitos intelectuais de seu tempo: “ eu me sublevo, depois me retiro à montanha, lavo as mãos…”. Ao contrário, fala da cidade, a rebelião deve ser feita ali para ser realmente eficaz. No entanto, sabe que é difícil; o indivíduo luta contra o mal mas é impossível mudá-lo em um só dia pelo bem. E, com suas próprias palavras: “depois de tudo, os filhos sempre morrerão injustamente, mesmo na sociedade perfeita. Em seu maior esforço, o homem só pode tentar diminuir aritmeticamente a dor do mundo”. Mas “o porquê de Dimitri Karamazov continuará ressoando; a arte e a rebeldia somente terminarão com o último homem”.
Em dez anos, aproximadamente, vemos como o autor vai do negativismo de El estranho a uma posição positiva. O importante é que o homem livre batalhe pelo amor dos outros homens, além do fruto que isto possa dar e dos valores aí contidos, só pensando na dignidade e na solidariedade humana.
Certamente, Camus fez com que uma voz moral, um humanismo laico fossem ouvidos desde o pós-guerra até sua morte.
Eis aqui um pequeno fragmento de seu discurso à Academia sueca ao receber o prêmio Nobel: “a tarefa do escritor, ao mesmo tempo, não se separa de deveres difíceis. Por definição, hoje, ele não pode colocar-se a serviço de quem faz a história: está a serviço daqueles que a sofrem”.
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*Georges-Michel Darricades. Colunista da Corporação Proyecta América a cargo da seção Cultura; também do Centro de Estudios Sociales Avance e da revista Política&Espíritu. Colaborador permanente de Mirada Global.
Autor: Georges-Michel Darricades
Fonte: Mirada Global
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