terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Basta tirar os sapatos

MICHAEL KEPP

--------------------------------------------------------------------------------

Ficar descalço chama a atenção
para furos nas nossas meias.
Mas a vulnerabilidade nos humaniza

--------------------------------------------------------------------------------

"GENTE INTERESSANTE" não é um clube exclusivo.
Qualquer um pode entrar, porque todos são interessantes para alguém. O grau de interesse depende do que a pessoa revela de si, e não do quanto ela mostra. Não precisa fazer um striptease. Basta tirar os sapatos e esperar os resultados.
Sim, tirar os sapatos traz riscos: chama a atenção para os buracos nas nossas meias.
Mas ser vulnerável humaniza e pode convencer o outro a também tirar os sapatos. A maioria precisa de um empurrãozinho para fazer isso.
Nas festas, uso álcool. Nas minhas crônicas, tiro bem mais do que os sapatos, porque o público está distante e normalmente é simpático.
Por isso, aos leitores já revelei minha transa com uma prostituta, a vez que botei no jornal um classificado amoroso, minhas dificuldades de lidar com a adolescência dos meus enteados, meu derrame e alguns dos meus defeitos (mas não os piores). Eu já escrevi até sobre meu pelo corporal. Mas, mesmo assim, eu nunca tiro tudo.
Todas essas confissões têm o propósito de provocar alguma reação: risos, lágrimas, raiva ou reflexão. Enfim, comover aqueles que conseguem se identificar comigo e se sentir menos alienados, menos solitários. Às vezes, essa cumplicidade se confirma em um e-mail que diz: "Sua crônica expressou algo que sempre senti e queria dizer, mas nunca consegui"."
Há pouco tempo, eu contei a um amigo que, durante uma viagem recente à minha cidade natal, visitei, pela primeira vez, o túmulo da minha mãe, que morreu quando eu tinha dez anos. E quando vi a lápide me emocionei tanto que a abracei como se fosse seu corpo. Daí ele me contou que há dois anos, no Peru, ele visitou a montanha onde ocorreu o acidente aéreo que matou seus pais quando ele tinha 13 anos. Quando viu uma cruz enorme fincada no lugar do desastre, ele se debruçou no solo diante dela e abriu os braços para dar nos seus pais o mesmo abraço simbólico que dei em minha mãe. Foi uma das raras vezes que ele se abriu comigo.
Ele tirou os sapatos porque eu tirei também. E quando duas pessoas começam a se expor, ambas ficam mais interessantes.
Uma pessoa pode ser interessante antes de abrir a boca. Pode ser também que ela nunca tire os sapatos e só revele que prefere se esconder.
Mas quem não corre o risco de se expor também paga um preço. Afinal, uma pérola só tem valor fora da ostra.
--------------------------------------------------------------------------------
*MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
Fonte: Folha online, 07/12/2010
Imagem da Internet

Nenhum comentário:

Postar um comentário