segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A morte ao vivo

JUREMIR MACHADO DA SILVA*
Crédito: ARTE PEDRO LOBO

Cheguei à idade em que se vai a enterros várias vezes por ano. Morreu um amigo. Mais uma baixa em nosso time de futebol. É verdade que ele já estava afastado. Mas ainda não tinha 50 anos. Fomos ao velório e ao enterro. Fiquei espantado com o avanço na logística do ritual. Em dado momento, a mestre de cerimônia funerária pediu que desligássemos nossos celulares. Parecia uma cena de Chuck Palahniuk, em "Sobrevivente". Como sempre tento ficar fora das capelas velatórias, eu ainda não havia notado a existência desse profissional, o mestre de cerimônias funerárias. Eu já estava com meu celular desligado, com medo de receber uma ligação do alto.
Meu amigo era uma figura. Às vezes, dizíamos dele por sacanagem: "Não vale um centavo, mas como é gente boa". Era mesmo. Gremista fanático. Economista schumpeteriano. Sacam? Houve um tempo em que ele me ligava a cobrar às 2h da manhã. Eu ficava furioso. Ele prometia nunca mais ligar. Uma semana depois, recomeçava. Quando me formei, lá por 1985, me emprestou seu apartamento para eu receber minha família. Quando recebi meu primeiro salário, cash, guardei a grana em casa, embaixo das cuecas. Ao voltar, ele havia feito um empréstimo da totalidade do valor sem a minha anuência. Fiquei transtornado. Uma semana depois, ele me pagou. Era um lutador, um malandro, um personagem, um sujeito muito inteligente, que se tornou mestre em passar em concursos difíceis. Rodava mesmo era nos exames médicos exigidos.
Fiquei impressionado com o enterro. O padre - acho que era um frei -, com aquela roupa que nos faz pensar em alguns rótulos de garrafão de vinho, fez um pequeno discurso desconcertante. Disse assim: "O importante não é viver muitos anos, mas viver intensamente cada dia". Uau! Nunca tinha visto um padre assim. Poucos traduziram com tanta precisão o imaginário do meu falecido amigo. Viveu até a última gota. Jamais acreditou no passado ou no futuro. Viveu sempre no presente. Anda pelas páginas - recortado, redimensionado, refeito - de alguns dos meus livros. Foi-se sem alarde. Morreu dormindo. Numa boa. O enterro aconteceu num sábado ensolarado e fresquinho. O cemitério estava quase bonito. A gente é que tinha pressa em sair dali. Alguns faltaram por causa de uma ressaca.
"Fiquei impressionado com o enterro.
O padre - acho que era um frei -,
com aquela roupa
que nos faz pensar em
alguns rótulos de garrafão de vinho,
fez um pequeno discurso desconcertante."
O caixão foi retirado da capela com uma agilidade que me deixou perplexo. Como se vai rápido para a sepultura! Acho que desceu por um elevador enquanto pegávamos uma escada. Dois especialistas aparafusaram a tampa da gaveta com movimentos de uma leveza apavorante. Nessas ocasiões, valorizo extremamente a função dos religiosos: organizam o movimento, dão um sentido ao vazio, coordenam os desgarrados e leem textos bonitos.
À tarde, pela primeira vez em 14 anos, embora outras baixas tenham acontecido antes, fizemos um minuto de silêncio em nossa "pelada" de futebol de salão. Um minuto exatamente não: 30 segundos. Simbólico. Rápido como a vida. Rápido como um enterro moderno. Rápido como um gol. Ainda não liguei novamente meu celular. Tenho medo de receber uma ligação a cobrar às 2h da manhã. Estou fora de área.
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* Filósofo. Escritor. Colunista do Correio do Povo
juremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo online, 05/12/2010

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