sábado, 25 de dezembro de 2010

PENSO, LOGO CAMINHO

A lenta inscrição da paisagem no corpo
Sucesso editorial na França, previsto para sair no Brasil em 2011, livro de Fréderic Gros fala do ato de caminhar como quem trata de filosofia

Escolham as dores que preferem: o corpo encapsulado no carro durante um engarrafamento gigante ou o res­mungo dos músculos depois de uma longa caminhada? A coluna mastigada por horas diante de uma tela ou a dormência da lombar impactada por pés que foram longe? A saturação mental pela cotidiana avalanche de informações ou o leve zunido da cabeça que pensou livremente o dia inteiro?
Frédéric Gros não esconde sua preferência pela fadiga preciosa, a que advém de um grato esforço. Filósofo, ele também caminha. “Duas coisas que detesto”, protestariam de chofre a síndrome de adolescente e o pragmatismo mercantil, monarcas absolutos da plasta época em que vivemos. No entanto, eu aposto: de sedentários barrigudos a ratos de biblioteca, poucos resistirão à prosa de Gros.
Na França, a obra foi acolhida com entusiasmo por sua escrita “soberana, límpida, exata” (Le Monde), além de “ritmada e enérgica” (Les Echos). Um “livro inclassificável” (L’Express), de “profunda simplicidade” (Le Figaro). Um convite a “itinerários a um só tempo universais e singulares”(L’Humanité). O sucesso foi também de público: a edição de bolso será lançada em breve.
Ora, intelectos refinados raramente produzem textos tão cativantes. Grande conhecedor e editor da obra de Michel Foucault, professor de Filosofia da Universidade de Paris XII, o jovem Frédéric Gros já acumula notável produção acadêmica, na qual se destaca um ensaio magistral sobre a guerra (États de Violence, Paris: Gallimard, 2006). Contudo, em entrevista ao Philosophie Magazine (agosto/2009), o autor explica que o elementar sobre a caminhada encontra-se fora do discurso filosófico universitário: “É que ela fala primeiro àquele que a pratica”.
Sim, o texto de Gros nos atinge fisicamente. Mas não entendam mal a sua faceta aeróbica. Não se trata de um guia para atletas ou peregrinos – aliás, o autor desconfia dos guias. A primeira frase esclarece que caminhar não é um esporte, pois prescinde de técnica, escore ou competição. Longe das grandes cerimônias da mídia, a caminhada é mera repetição de um gesto infantil: um pé diante do outro. Nas longas marchas, aliás, em radical oposição ao ritmo de vida contemporâneo, o maior sinal de segurança é a lentidão. A velocidade é uma perda de tempo. Sei que chegarei ao final, portanto desfruto, não preciso correr. O estirar do tempo aprofunda o espaço.
Então de que trata o livro? Penso, logo... caminho? Ou vice-versa? O certo é que aqui a filosofia não é vã: é um grande vão – como verbo conjugado (incitação a ir) e como substantivo (espaço que atrai). Gros segue, entre outros, os passos de Nietzsche: lágrimas de felicidade ao caminhar longamente, nada sentimentais, mas que marcam seu “privilégio sobre os homens de hoje”. De Rimbaud, para quem o aqui era insuportável, por isto a fuga obstinada e enraivecida, a morte de passagem por Marselha. De Thoreau, em busca do primitivo, não por ser antigo, mas porque ali ainda vibram as forças de nosso futuro. Na trilha da filosofia, faz-se uma filosofia da trilha; Rousseau, Nerval e Gandhi ladeiam andarilhos anônimos.
Sem cacoetes de biógrafo ou resquícios de arrogância, o autor trança, mas não as pernas. Não é um “livro obeso”, embuchado de bibliotecas, “envenenado pelas morais sedentárias”. Os capítulos são curtos, plenos de frescor. Abordam o silêncio – no ruído da natureza, dissipa-se nossa linguagem funcional. E a solidão: se a tropa for grande, caminhar pode tornar-se um inferno, “a sociedade transportada para a montanha”.
Só, ou em solidão compartilhada, caminhar despoja. O que parecia imprescindível mostra-se um peso, porque as ofertas em profusão (bens, transportes, redes) e as facilidades (comunicar-se, comprar, circular) geram dependências que nos aprisionam. Logo, aparentes privações convertem-se em pequenas libertações. A infusão do corpo em sabores, cheiros e cores permite “possuir sem os inconvenientes da propriedade”. Restam os da incerteza. Mas quando há chuva, frio ou calor inclementes, exaustão ou percalços, a alma encoraja o corpo e se orgulha dele. “Nada do seu saber, de suas leituras, de suas relações, servirá aqui: duas pernas bastam, e grandes olhos para ver”, escreve Gros.
Caminhar também põe em xeque o abismo entre fora e dentro. Lá fora significa quase sempre uma transição entre interiores: o brincar das crianças, o sair dos adultos, o caminho entre trabalho e casa, a higiene mental de Kant ou a pausa para arejar. Entretanto, na caminhada, o fora é estável, é lá mesmo. A constância do passo permite habitar uma paisagem, impregnar-se dela. Em lugar do acúmulo de imagens fugazes, pequenas doses de presença.
A propósito, em palestra sobre o livro (disponível no site http://www.laprocure.com/ ), o autor resgata Platão, para quem o conhecimento exige que se habite os problemas, que neles se passeie com desenvoltura antes de resolvê-los. Na mesma ocasião, Gros cede ao célebre exercício estoico da “precisão da urgência”: o que faria se tivesse apenas duas semanas de vida? “Uma imensa caminhada”, responde sem hesitar.
Assim, na contramão da liturgia social e do jugo econômico que nos acachapam, surge o fôlego subversivo de Gros, ar puro que encoraja à evasão. Não é preciso ir muito longe para caminhar, ou para viver de outro modo. Basta valorar cada gesto pelo que custa em “instantes de vida pura”; familiarizar-se com as verdadeiras paisagens, e não se contentar com suas representações. Enfim, ao mesmo tempo e sem pressa, caminhemos mais e pensemos melhor.

CAMINHAR, UMA FILOSOFIA

Livro de Frédéric Gros, em tradução literal,
tem publicação no Brasil, pela editora paulista É Realizações,
prevista para 2011.
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REPORTAGEM POR DEISY VENTURA
PROFESSORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, AUTORA DE “AS ASSIMETRIAS ENTRE O MERCOSUL E A UNIÃO EUROPEIA” (MANOLE, 2003)
Fonte: ZH online, 24/12/2010

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