João Mellão Neto*
Imagem da Internet
Tenho escrito diversas cartas aos meus filhos, aqui, no Estadão, há pelo menos duas décadas. Relendo algumas delas, percebo que cobri toda a infância e juventude deles. Esta é a primeira que eu lhes endereço quando, apesar de solteiros, já são adultos. O Joãozinho está com quase 27 anos, o Rick tem 25 e a Anna Maria, 24. Estou completando 34 anos de experiência política. Comecei em 1977, quando ingressei na faculdade e no movimento estudantil me foi apresentado o fascinante mundo das ideologias.
Após tanto tempo lidando - e militando - no campo das ideias, creio que alguma coisa eu já aprendi e posso transmitir a eles.
A Dora, minha mulher e namorada desde que éramos meninos, há de concordar com tudo isto que eu vou escrever às nossas, para mim, eternas "crianças".
Filhos, vocês aprenderam comigo a gostar de política, mas entendam que ela é, ao mesmo tempo, a arte de iludir os outros e a de enganar a nós mesmos. Como político, escritor e jornalista desde os 17 anos de idade, confesso a vocês que, agora mais maduro, estou desencantado com as palavras. E também com as ideias que elas servem para formular e com as ideologias nas quais elas, fatalmente, desembocam.
As palavras, as ideias e as ideologias são, na prática, somente expedientes pelos quais a gente se dispensa de pensar. Como quase todo mundo se enleva e se empolga com frases bem construídas, ideias sublimes, ideais românticos e ideologias atraentes, todos, assim, se eximem de raciocinar.
De todas essas formas citadas, as ideologias são, de longe, as mais traiçoeiras. Em função delas o século 20 - no qual eu passei a maior parte de minha vida e vocês, felizmente, estão já dispensados de experimentar - se configurou como o mais sangrento de toda a História humana. Tivemos duas guerras mundiais. E somente nelas foram ceifadas não menos que 70 milhões de vidas. Vidas estas, em sua maior parte, que estavam apenas se iniciando. Eram quase todas de jovens. Mais jovens do que vocês...
Pelo que lutaram? Havia claros interesses econômicos em jogo. Mas quem se alistou - ou foi alistado - não sabia disso. Ao contrário, foi dito a eles que, se morressem, o fariam em nome de uma grande causa. Seriam sacrificados no altar da pátria e da nação - no caso da 1.ª Guerra. E na defesa de uma ideologia redentora, na 2.ª. As três grandes ideologias totalitárias que se entrechocaram no segundo conflito eram o fascismo, o nazismo e o comunismo.
Havia, também ali quem estivesse lutando em nome de conceitos mais abstratos, como a democracia e a liberdade. Mas, para os inimigos, essas ideias apenas mascaravam o fato de que o que eles defendiam era tão somente o "imperialismo".
"Filhos, quando alguém é torturado,
assassinado ou discriminado
em razão de suas opiniões,
somos todos nós que estamos em perigo.
Portanto nunca perguntem
"por quem os sinos dobram":
os sinos sempre dobram por todos nós..."
Meus filhos, eu aprendi, através da vida, que as ideologias mais atraentes são as que mais rapidamente nos levam ao abismo. É melhor não se deixar entusiasmar por nenhuma delas. Não as tenhamos, para nós, como uma espécie de religião. Temos, isso sim, de defender - de forma intransigente até - os princípios que regem a democracia e a sociedade aberta.
Quais são eles? A liberdade de opinião, expressão e reunião. Os direitos de cada indivíduo e da sociedade. A livre concorrência, tanto econômica como política. E nunca deixar de ter em mente que a democracia não é apenas a vontade da maioria, é também o respeito aos direitos das minorias.
Quando estes últimos são desconsiderados, o que se viu, no século 20, foi o Holocausto de Hitler e o Holodomor de Stalin: o massacre de judeus, eslavos e outras etnias em nome da "pureza racial" e a morte pela fome induzida dos camponeses que não aceitaram o socialismo. Milhões e milhões sucumbiram, de um lado e do outro. Outros tantos milhões foram dizimados em nome do "comunismo de massas" de Mao e dos Khmers Vermelhos. E também em nome do "anticomunismo" das recorrentes ditaduras na África e na América Latina.
Não importa de que lado estejam nem o que prometam: todos têm de se submeter às regras do jogo democrático.
Vocês haverão de me questionar: mas, pai, lutar apenas pela manutenção das garantias democráticas não tem graça nenhuma! E o problema da desigualdade social, como fica?
As desigualdades sociais nunca foram reduzidas em função de ideologias. Somente mudaram de nome. Nenhum pacote fechado de ideias logrou, até hoje, na História, abolir as agruras da sociedade.
As visões prontas e acabadas do mundo são quase irresistíveis. Todas elas nos acenam com o paraíso na Terra, todas elas são dotadas de interpretações convincentes para tudo, todas elas nos apontam um caminho a ser trilhado para transformar e melhorar os homens e a sociedade.
O fato é que as mais cruéis ditaduras, as mais opressoras, as mais cruéis e inescrupulosas são aquelas que existem em nome de uma bela causa.
Aqui, entre nós, latinos - onde se costuma substituir os atos pelas palavras -, já houve quem afirmasse que "as desumanidades cometidas pelos regimes de esquerda se justificam, mas pelos de direita, não. As atrocidades em nome do socialismo não passam de "acidentes de percurso", porque a causa final é justa. No caso da direita, essas barbaridades são muito graves, porque resultam de uma contradição inerente ao sistema". Eu creio que o mesmo conceito vale para os ativistas de direita. Só que com os sinais trocados...
Filhos, quando alguém é torturado, assassinado ou discriminado em razão de suas opiniões, somos todos nós que estamos em perigo. Portanto nunca perguntem "por quem os sinos dobram": os sinos sempre dobram por todos nós...
------------------------------------
*JORNALISTA, DEPUTADO ESTADUAL, FOI DEPUTADO FEDERAL, SECRETÁRIO E MINISTRO DE ESTADO
FONTE: ESTADÃO ONLINE, 17/12/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário