quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Verdadeiras e falsas reformas na Igreja católica

Sergio Micco Aguayo*
O teólogo Yves Congar perguntou a si mesmo o
que teria levado Pedro Valdo a fracassar em sua tentativa de reformar a Igreja e ,
em compensação, São Francisco de Assis deu a ela um poderoso renascer
que ainda comove milhões de seres humanos.

A necessidade de reforma é evidente na Igreja Católica. No entanto, muitos hesitam. As resistências à mudança não só vêm, como seria de esperar, a partir do centro e das altas cúpulas do Vaticano. Procedem também dos setores mais baixos e de suas margens. Muitos laicos temem que as críticas transbordem, que as posições se polarizem e que a emigração se precipite numa instituição já debilitada por uma crise externa. Por isso, alguns optam pela extrema lealdade e assumem a atitude de uma identidade de resistência. Ferozmente condenam o mundo que critica a sua Igreja. Outros expressam sua lealdade, passando a exercer uma fidelidade de silêncio: calam, não se pronunciam, frequentam sem ânimo os cultos dominicais e observam com tristeza os fatos. Outros, a minoria — pois habitam uma instituição hierárquica—, levantam a voz, criticam. Mas suas palavras são azedas, geram desencontros, e eles acabam escolhendo a saída.
Os que querem falar com justiça e atuar com prudência perguntam como fazer uma reforma bem sucedida, isto é, que não provoque maiores problemas que aqueles que pretende curar. É a pergunta que se fez o teólogo dominicano Yves Congar em 1950. Recordar seu grande esforço intelectual não só é pertinente nos tempos atuais, como objeto de sua preocupação, mas também por vir de sua parte. (1) Na verdade,Congar esteve na vanguarda da nova teologia francesa , ao lado de Marie Dominique Chenu e Henri de Lubac. Por isso, em tempos de escuridão, em 1954 “foi expulso de seu posto de professor de Le Saulchoir, na Bélgica, exilado em Jerusalém e depois em Cambridge. Além disso, suas pesquisas foram proibidas de serem ensinadas e publicadas” (2). No entanto, com santa paciência persistiu e foi chamado pelo Papa João XXIII a desempenhar um papel importante no Concílio Vaticano II. Viu muitos de seus esforços teológicos serem coroados, embora continuasse sendo perseguido pela instituição que ele sempre amou. Seu lema parece ser: “ Deve-se aceitar a Igreja, mas não tal como ela é”.
Yves Congar se perguntou o que Pedro Valdo fizera para fracassar em sua tentativa de reformar a Igreja e, em compensação, porque São Francisco de Assis deu a ela um poderoso renascer que comove milhões de seres humanos até hoje.
Ambos foram quase contemporâneos na Europa medieval. Quando jovens, foram ricos que venderam tudo para formar uma ordem de mendicantes, cujo objetivo era a conversão evangélica de uma cristandade endurecida. Seus seguidores chegaram a ser contados por dezenas de milhares. Em tempos de fome percorriam os caminhos, dando de comer. Valdo inclusive se adiantou à reforma protestante. A metade de seu dinheiro dera aos pobres e a outra destinou à tradução do Novo Testamento (latim ao romance). Seus seguidores, os Pobres de Lyon, formavam uma multidão desejosa de renovação. Mas Valdo foi excomungado em 1181 e São Francisco de Assis, pelo contrário, canonizado em 1228. “O pobre de Assis”, mudando a Igreja, apontou para o renascimento de uma Europa cristã. “Os Pobres de Lyon”, perseguidos e confundidos, desapareceram da face da cristandade. Por que São Francisco sim e Valdo não? A resposta é dada pelo padre Jean Baptiste Henri Lacordaire:
“Ele (Valdo) acreditou que era impossível salvar à Igreja através da Igreja” (3). São Francisco, pelo contrário, nunca renunciou a isso.
CONDIÇÕES PARA A REFORMA

Congar estuda, discerne, reza e conclui que quatro são as condições para uma reforma bem sucedida.

A primeira é a primazia da caridade e da pastoral. A reforma vive do profetismo, da crença de se ter uma missão que chama a um novo nascimento dentro de uma família à qual, além das críticas e da dureza da luta, nunca se deixa de pertencer afetuosamente. Mas atenção: a reforma é para servir pastoral e apostólicamente as necessidades espirituais das pessoas. Não se trata de promover idéias luminosas que façam do cristianismo um sistema de pensamento cujo ídolo é a verdade dos sábios. Nada de quimeras, excessos, nem unilateralismos sectários. São Francisco de Assis não faz da pobreza, da continência nem da humildade armas arrojadas ou ferramentas teóricas, contra a propriedade, o matrimônio, o saber ou a Hierarquia. Vive santamente sua verdade, rompendo com uma religiosidade distinta para gente distinta. Por isso, até os lobos e as aves do campo parecem amá-lo e segui-lo.

A segunda condição é manter-se na comunhão com o todo. No exercício da missão profética ou reformista, nunca se deve perder o contato vivente com todo o corpo da Igreja. Esta não pode ser outra coisa que uma assembléia de apóstolos que recebem juntos sua missão e atuam “pensando e querendo dentro do espírito e do coração de todos” (4). Ninguém pode compreender, realizar nem formular toda a verdade contida na Igreja. É católico quem, afirmando sua verdade, nunca nega os outros nem se afasta da comunhão com todos os que são admitidos nela. Este sentire cum ecclesia não é conformismo a uma regra exterior, mas um sentire vere in Ecclesia militante, dando nova vida ao velho corpo (5).

A terceira condição é a paciência e o respeito pelos prazos da Igreja. Quem desrespeita os prazos de Deus, da Igreja e da vida, caminha para o desespero, para a saída e decisão cismática. O querer fazer tudo, sozinho e agora, leva a uma pressa inquietante e à angustiante carga do presente. Cada dia tem sua determinação. Toda longa jornada se inicia com um primeiro e modesto passo. As grandes coisas são feitas “sem pressa mas sem pausa”. Como a Igreja não gosta dos fatos consumados nem da via facti, normalmente o reformista impaciente termina trabalhando para seu inimigo: o conservador radical. Por isso, paciência. Paciência que, mais do que uma questão cronológica, é uma atitude de caráter. Temperança, disposição da alma, humildade forte, espírito leve, consciência das próprias misérias e imperfeições e as dos outros também. As idéias podem ser puras; a realidade e a vida não o são. Só o que é feito com a colaboração do tempo pode vencer o próprio tempo. No entanto, os prazos não são eternos. Ter atrasado um Concílio reformador que se pedia há mais de cinquenta anos arrastou Lutero ao convencimento de que a reforma não só seria sem a Igreja, mas contra ela. O Concílio de Trento se iniciou em 1545, e Lutero morreria em 1546.

A quarta condição é apostar na reforma como retorno aos princípios da tradição e não como imposição mecânica de uma novidade. É certo que normalmente o impacto que colocará em movimento a reforma virá do mundo, mas ela não poderá ser feita a partir das fortalezas estrangeiras. Revertimini ad fontes, disse Papa Pío X. Retornar às fontes litúrgicas, bíblicas e patrísticas (6). A grande lei do reformismo católico é partir por um retorno aos princípios, interrogando a tradição. Nela sempre encontraremos fontes de inspiração. A Igreja é como uma árvore frondosa na qual nascem mil ramos diferentes de sabedoria. É como uma velha mansão onde sempre terá um quarto fechado a ser aberto , para descobrir tesouros esquecidos que estavam esperando uma nova oportunidade para serem admirados. A tradição não é rotina nem passado. É um depósito inesgotável dos tesouros do dom inicial, dos textos e realidades do cristianismo primitivo, do pensamento dos Padres da Igreja, da fé e as preces, liturgias e orações de todo um povo de Deus, das buscas autênticas dos doutores e dos místicos, do desenvolvimento da piedade e do movimento da Igreja concreta, em um trabalho perpétuo de dar continuidade ao evangelho original sob a regulação do Magistério (7). Basear, assim, a reforma numa firme teologia eclesiológica. Discernir e assimilar do e a partir do interior do espírito e da consciência católica. Abrir a Igreja à plenitude ou universalidade da unidade.

CONCLUSÃO

Em suma, para Congar a falsa reforma é “uso de um processo puramente racional, teimosia individualista na convicção de ter a razão contra a tradição comum da Igreja, impaciência do espírito; enfim, ausência de uma volta às fontes profundas dos mesmos princípios e elaboração puramente cerebral de um programa artificial estranho a uma tradição concreta e viva” (8). Pelo contrário, a reforma da Igreja é tarefa de uma equipe e de, pelo menos, uma geração. Consiste em trazer novamente a Boa Nova, sob novas formas e inescrutáveis caminhos, aos pobres, às viúvas, aos órfãos, aos estrangeiros de hoje. Geração inteira? “Não”, diz Congar “Melhor ainda, obra de todo um povo (quero dizer: de todo o corpo da Igreja, clérigos e laicos), pois não pode ser realizada senão sob o impulso dos elementos proféticos e dentro da comunhão de toda a Igreja” (9).
Os laicos que temem a crítica do mundo e as mudanças necessárias, deveriam ouvir o que Cristo disse “Eu sou a verdade, o caminho e a vida”, não “Eu sou o costume”. Dizer aos laicos que guardam silêncio e olham temerosos para a Hierarquia, esperando uma mudança, que eles também são sacerdotes e profetas chamados a dar depoimento no mundo e dizer a suas autoridades a verdade, tirando-as de uma rotina ilusória por desastrosa, dadora de falsas seguranças. Ante os laicos impacientes, próximos ao desespero e à saída de uma instituição que consideram envelhecida até a morte, dever-se-ia apelar à esperança ativa de São Paulo em “Não apagueis o Espírito. Não menosprezeis as profecias. Examinai tudo; mantende o bom. Abstende-vos de toda espécie de mal” (1 Tessalonicenses, 19-22). Valdo não pensou que fosse possível e foi vencido. São Francisco de Assis entendeu aquilo de “fazer todas as coisas novas” e, quase nu, triunfou.

(1) Descobri na Biblioteca da Universidade Alberto Hurtado a edição francesa de Verdaderas y falsas reformas en la Iglesia. Consigna-se: “Le Saulchoir, 30 avril 1950”. Forma parte de um monumental esforço de pensar a comunhão católica, em oito cadernos. Este é o quarto, de 648 páginas. Congar, Yves: Vrai et fausse reforme dans l’église. Edition du Cerf, París, 1950.
2 Woodrow, Alain: “Concilio Vaticano II. Congar: Diario de un testigo”. Revista Mensaje N° 516, janeiro-fevereiro 2003, p. 15.
3 Congar, Yves: Vrai et fausse reforme dans l’église. Edition du Cerf, París, 1950, p. 251.
4 Ibídem, p. 271.
5 Ibídem, p. 274.
6 Ibídem, p. 337.
7 Ibídem, p. 336.
8 Ibídem, p. 342.
9 Ibídem, p. 347.
______________
*Sergio Micco Aguayo. Advogado, licenciado em Ciência Política e doutor em Filosofia Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile.
Fonte: Mirada Global - Acesso 16/12/2010


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