domingo, 12 de dezembro de 2010

Malditos e estranhos

JUREMIR MACHADO DA SILVA*

Crédito: ARTE PEDRO LOBO

Há algum tempo, citei aqui uma frase de Tolstoi: "Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". Saiu sem a palavra "felizes". Dormi no ponto. Um leitor percebeu. A felicidade é tão sem graça literariamente que me escapou. O sociólogo polonês, professor na Inglaterra, Zygmunt Bauman, transformou a sacada de Tolstoi em "todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira". É água no vinho. Bauman está na moda no Brasil graças a textos na Folha de S. Paulo. Ele teve uma grande ideia na vida: a modernidade líquida, o amor líquido, etc. Tudo é líquido com ele.
A frase que citei acima é a epígrafe de um livro (Edunisc) interessante, "Identidades Rasuradas, o Caso da Comunidade Afrodescendente de Santa Cruz do Sul (1970-2000)", de Mateus Skolaude. Como ser negro numa comunidade germânica? Eis a questão. Vale à leitura. Bauman não diz nada melhor do que Gilles Lipovetsky, Michel Maffesoli ou Jean Baudrillard. Tem a vantagem, no entanto, de não ser francês, num ambiente hostil ao ceticismo e ao niilismo parisienses, e de falar em modernidade em lugar de pós ou hipermodernidade. A modernidade, apesar de nunca ter sido completamente praticada no Brasil, é uma obsessão de escritores, empresários e marxistas. Graças a essa mania, trocamos o transporte ferroviário pelo rodoviário, queremos arranha-céus dentro dos rios, publicamos dezenas de romances ilegíveis todo ano e ainda temos pencas de professores marxistas em nossas universidades públicas.
"Queremos mudar
e permanecer,
ser estranhos
e reconhecíveis."
O grande desafio pós ou hipermoderno é abandonar o esquerdismo marxista sem cair no direitismo. No caso do estudo das comunidades afrodescendentes, Lipovetsky, o rei dos paradoxos, seria talvez mais inspirador do que Bauman: como manter e valorizar uma identidade numa época de crise das identidades? Somos quase todos estranhos. Eu sou estranho e maldito. Qual a minha identidade? Sei apenas das minhas identificações. Passageiras, quase sempre. Sou líquido? Há muito de sólido ainda em nossas vidas. Sou colorado. Sempre. Amo os meus e não os abandono. A maldição e a estranheza são novas formas de identidade ou de identificação. Como já dizia o poeta Jean-Arthur Rimbaud, "o eu é um outro". Mas é o mesmo. Todos os dias, diante do espelho, sou o mesmo. Sempre.
Imaginei um personagem que, de repente, passasse a ter o rosto de outro homem. No começo, chamado pelo nome de outro, estranharia. Diante do espelho, não se reconheceria. A cada manhã, teria um novo rosto. O imaginário, contudo, seria o mesmo. Que pesadelo! O contrário - um mesmo rosto para um imaginário diferente a cada dia - não é menos assustador. Queremos mudar e permanecer, ser estranhos e reconhecíveis. Gostamos de ter a possibilidade de fluir, não de escorrer pelo ralo da vida como um jato de água suja. A maior estranheza ainda é não pertencer a grupo algum. Somos sempre tribais. Nossa fluidez termina na solidez de um grupo.
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* Filósofo. Escritor. Colunista do Correio do Povo.juremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo online, 12/12/2010

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