segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Morte de Deus e fim da metafísica: a luta contra os absolutos.

Entrevista especial com Gianni Vattimo*

"Se Deus está morto e a metafísica perdeu sua efetividade,
somos livres para praticarmos a caridade".
“O relativismo é somente uma outra face do fim da metafísica. Não existe mais um valor supremo em relação ao qual mensurar todos os outros valores. Nietzsche escreve que agora que Deus é morto e queremos que vivam muitos dos relativismos não significa ausência de valores, mas fim da pretensão do valor absoluto”, constata o filósofo italiano Gianni Vattimo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Em seu ponto de vista, o pluralismo de valores e o próprio relativismo não representam um mal em si mesmos. “A violência só se desencadeia quando um dos tantos valores pretende ser o único e valer para todos”, como é o caso da política externa dos Estados Unidos, que se acredita um país representante dos “verdadeiros valores da humanidade”.
Vattimo destaca as potencialidades da era de incertezas que vivemos. Para ele, “o niilismo é a via da emancipação e da salvação: somente reduzindo progressivamente as pretensões absolutas, os valores e também as evidências materiais, podemos realizar uma humanidade mais autêntica e assim menos fanática, mais amigável".
E provoca: “o verdadeiro pecado original do qual ainda somos vítimas é a pretensão metafísica de ter razão”. Lutar contra os absolutos deve ser a base de entendimento com a alteridade. “Isso significa que o que devemos ter em comum é o exercício da caridade”. Para o filósofo, a “luta contra os absolutos pode ser a base sobre a qual nos entendemos com os outros”.
Criador da filosofia do “pensamento fraco”, Vattimo escreveu inúmeras obras, das quais destacamos Acreditar em acreditar (Lisboa: Relógio D’Água, 1998); Depois da cristandade. Por um cristianismo não religioso (São Paulo: Record, 2004) e O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1996).
Ele também é deputado no Parlamento Europeu.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como podemos compreender a “morte de Deus” e o niilismo e relativismo que vêm em seu corolário, em contraposição à crescente procura pela transcendência e pelo sagrado na pós-modernidade?
Gianni Vattimo - A nova sensibilidade pelo transcendente, a necessidade difusa de um retorno à religião me parecem ser motivadas pela gravidade das questões éticas ante as quais se encontra hoje a humanidade: a exaustão dos recursos do planeta, manipulação genética, exploração e desfrute capitalista intensificado também por causa da globalização, políticas de “segurança” contra o assim dito “terrorismo” e a revolta dos povos pobres. Um conjunto de problemas que fazem pensar na frase de Heidegger: “agora só um Deus nos pode salvar”.
De outra parte, também em filosofia caíram todos os sistemas que acreditavam ter demonstrado que Deus não existe: o pensamento pós-moderno e precisamente a “morte de Deus” de que falava Nietzsche, e que era a morte da metafísica racionalista, reabriram a possibilidade de uma visão religiosa do mundo. Só que, se Deus é de novo possível para a pós-modernidade, pensar encontrá-lo nas formas da religião tradicional é um equívoco; aquele Deus (dos filósofos, como diz Pascal (1); da estrutura necessária do mundo, etc.) não é mais crível. Por isso, poderemos dizer que “somente um Deus pós-metafísico” pode salvar-nos...

IHU On-Line - De que maneira essa constatação de deicídio sedimenta a dissolução dos valores e o relativismo ético que vivenciamos?
Gianni Vattimo - O relativismo é somente uma outra face do fim da metafísica. Não existe mais um valor supremo em relação ao qual mensurar todos os outros valores. Nietzsche escreve que agora que Deus é morto e queremos que vivam muitos dos relativismos não significa ausência de valores, mas fim da pretensão do valor absoluto. O fim da metafísica é paralelo, ou idêntico, com o fim do imperialismo. Há quem pretenda uma autoridade absoluta que reivindica possuir o valor supremo: os nazistas diziam que “Deus é conosco”. E hoje uma superpotência, os Estados Unidos da América, crê representar os verdadeiros valores da humanidade, o império do bem contra o “mal”... Em si, o pluralismo dos valores, o relativismo, não é um mal. A violência só se desencadeia quando um dos tantos valores pretende ser o único e valer para todos. O cristianismo coloca primeiro a caridade, até mesmo antes da verdade. Ou melhor, há verdade vivida somente lá onde há caridade, aceitação do outro e, portanto, também relativismo.

IHU On-Line - Em que sentido o advento da morte de Deus repercute na fragmentarização e debilitamento do sujeito pós-moderno?
Gianni Vattimo - O sujeito pós-moderno está debilitado porque não pode mais apoiar-se num valor absoluto. Mas, aqui, debilidade significa redução da violência e das pretensões de valor definitivo. Também a psicanálise deixou claro que a autoconsciência cartesiana – penso, portanto sou – não é tão absolutamente segura: há o inconsciente que a condiciona e que jamais se deixa iluminar completamente... O sujeito debilitado é somente aquele mais tolerante, aberto aos outros, já que espontaneamente (será culpa do pecado original?) o sujeito tende a ser violento, pelo que a debilidade e a abertura requerem um notável esforço: só é possível debilitar-se com um ato de vontade e não simplesmente “deixando-se ir”.

IHU On-Line – Atualmente, desmente-se o mundo metafísico sem nem mesmo se crer no mundo físico. O que resta após esse niilismo radical?
Gianni Vattimo - Não é necessário confundir o niilismo com uma tese metafísica. Não dizemos que não existe o mundo, nem o mundo metafísico, nem o mundo físico. Dizemos – pelo menos o “pensamento fraco” que eu professo, corrigindo Nietzsche com Heidegger - que o niilismo é a via da emancipação e da salvação: somente reduzindo progressivamente as pretensões absolutas, os valores e também as evidências materiais, podemos realizar uma humanidade mais autêntica e assim menos fanática, mais amigável. E depois não é tão irracional pensar – como haviam pensado grandes filósofos como Hegel (2) – que o mundo e o homem tenham um destino de uma sempre mais pura espiritualidade: menos resistência do mundo natural (ciência e técnica o plasmam e modificam), menos resistências no campo das normas e das leis (valem aquelas que livremente estabelecemos).

IHU On-Line - Que possibilidades positivas se descortinam a partir de tal configuração fragmentária do mundo?
Gianni Vattimo - As implicações positivas deste niilismo resultam já das respostas dadas até agora: pode-se resumir tudo dizendo que se Deus está morto, se não se pode crer no absoluto da metafísica, estamos finalmente livres de praticar a caridade. A violência na história nasce sempre de uma absolutização: de si mesmo no caso mais elementar, mas também da própria “verdade” nos casos mais complexos: faço violência porque considero ter para tal o “direito”, porque tenho “razão”, porque, em tantos casos, quero impedir o outro de difundir o erro, a sua verdade... Ou até mesmo porque quero salvá-lo: o mote compelle intrare [obriga-o a entrar] (subentende-se “na Igreja”) é de Santo Agostinho (3) : por exemplo, deves obrigar os “selvagens” da floresta amazônica a tornarem-se cristãos, “para seu bem”. Em suma, o verdadeiro pecado original do qual ainda somos vítimas é a pretensão metafísica de ter razão.

IHU On-Line - Em que medida o conceito nietzschiano de “platonismo para o povo” tem alguma atualidade crítica no que diz respeito ao cristianismo?
Gianni Vattimo - Platonismo para o povo quer dizer convicção metafísica de estar na verdade. O cristianismo, enquanto tem sido uma força histórica que acompanhou o desenvolvimento do Ocidente, quis ser isto: a história da Igreja é plena de exemplos de violência exercida por amor à fé, à “verdade”. Mas, ao invés, era somente pretensão violenta de poder.

IHU On-Line - Qual seria o solo comum para o entendimento dos seres humanos numa sociedade com essas características niilistas?
Gianni Vattimo - A luta contra os absolutos pode ser a base sobre a qual nos entendemos com os outros. Isso significa que o que devemos ter em comum é o exercício da caridade. Também em política um programa democrático não é, então, outra coisa senão isto: remover todos os obstáculos que se opõem à compreensão entre as pessoas: por exemplo, remover as desigualdades econômicas que nos dividem, afastar a doença e a fome, criticar e desmentir as ideologias que nascem de interesses privados por trás do “professar teorias”.

IHU On-Line - Como podemos falar e fazer solidariedade e ética no contexto do niilismo e do relativismo de valores?
Gianni Vattimo - A tolerância não significa deixar que os outros se percam. Significa, ao invés, ajuda para cada um realizar os próprios ideais de vida. O “último” Foucault (4) falou com frequência de estilos de vida: basta que um estilo de vida não impeça os outros de realizarem o próprio. Pode-se observar que isto é uma espécie de minimalismo ético liberal... Mas, para realizar uma sociedade tolerante e caritativa, se requer uma verdadeira revolução...

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto que não foi perguntado?
Gianni Vattimo - Não aceitar como normal e justo aquilo que acontece habitualmente era um refrão de Bertold Brecht (5).

Notas:

1.- Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, físico e matemático francês que criou uma das afirmações mais repetidas pela humanidade nos séculos posteriores: O coração tem razões que a própria razão desconhece, síntese de sua doutrina filosófica: o raciocínio lógico e a emoção. (Nota da IHU On-Line).
2.- Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no século XX. Sobre Hegel, confira a edição nº 217 da IHU On-Line, de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de lançamento dessa obra. O material está disponível em http://migre.me/zAON. Sobre Hegel, leia, ainda, a edição 261 da IHU On-Line, de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, disponível em http://migre.me/zAOX. (Nota da IHU On-Line).
3.- Aurélio Agostinho (354-430): conhecido também como Santo Agostinho, nasceu em Tagaste. Bispo, escritor, teólogo, filósofo foi uma das figuras mais importantes no desenvolviemnto do cristianismo no Ocidente. Ele foi influenciado pelo neoplatonismo de Plotino e criou o conceito de pecado original e guerra justa. (Nota da IHU On-Line).
4.- Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores, contrariando a sua própria opinião de si mesmo, um pós-moderno. Seus primeiros trabalhos (História da Loucura, O Nascimento da Clínica, As Palavras e as Coisas, A Arqueologia do Saber) seguem uma linha estruturalista, o que não impede que seja considerado geralmente como um pós-estruturalista devido a obras posteriores como Vigiar e Punir e A História da Sexualidade. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas deste termo. Para ele, o poder não pode ser localizado em uma instituição ou no Estado, o que tornaria impossível a "tomada de poder" proposta pelos marxistas. O poder não é considerado como algo que o indivíduo cede a um soberano (concepção contratual jurídico-política), mas sim como uma relação de forças. Ao ser relação, o poder está em todas as partes, uma pessoa está atravessada por relações de poder, não pode ser considerada independente delas. Para Foucault, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. Em duas edições a IHU On-Line bdedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004, disponível para download em http://migre.me/vMiS e a edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://migre.me/vMj7. Além disso, o IHU organizou, durante o ano de 2004, o evento Ciclo de Estudos sobre Michel Foucault, que também foi tema da edição número 13 dos Cadernos IHU em Formação, disponível para download em http://migre.me/vMjd sob o título Michel Foucault. Sua contribuição para a educação, a política e a ética.
Confira, também, a entrevista com o filósofo José Ternes, concedida à IHU On-Line 325, sob o título Foucault, a sociedade panóptica e o sujeito histórico, disponível em http://migre.me/zASO. De 13 a 16 de setembro de 2010 aconteceu o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana.
Para maiores informações, acesse http://migre.me/JyaH. Confira a edição 343 da IHU On-Line, intitulada O (des)governo biopolítico da vida humana, publicada em 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/bi5U9l, e a edição 344, intitulada Biopolitica, estado de excecao e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/9SQCgl. (Nota da IHU On-Line).
5.- Bertold Brecht (1898-1956): autor que escreveu poesia, teatro, ensaios e roteiros de cinema, lutando durante toda a sua vida pelos oprimidos. Claramente assumiu posições de esquerda e procurou colocar a luta de classes no palco, buscando a dúvida dialética. (Nota da IHU On-Line).
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* Filósofo italiano e deputado do Parlamento Europeu.
Fonte: IHU online,   20/12/2010

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