Ivan Marsiglia*
Ela acaba de completar 100 anos e fala de seus ritos de passagem –
o próximo, sábado que vem
Quer saber? Vou falar. Sempre fui uma faixa discreta, mas ando atravessada com isso. Quase ninguém lembra que existo. Pensam que sou mera formalidade, peça de museu, resquício do passado. Quanta injustiça! Não que eu queira os louros só para mim – a bem da verdade, nasci foi para substituir isso aí, os louros da Roma antiga, mas essa é uma longa história. Peço apenas um pouco de consideração pelas minhas funções. Não é para reclamar não, mas alguém como eu tem que andar na linha, viu? Vivo trancada num cofre e só tenho direito, se muito, a duas voltinhas por ano: no desfile de 7 de Setembro e quando tem festa de posse. Nessa, às vezes nem banho de sol tomo, pois chove quase sempre. E sempre é aquilo: carro aberto ou carro fechado? Carro aberto ou carro fechado? Não desenrola nunca. Eu ali, prontinha, querendo dizer: “Tem graça andar num Rolls-Royce conversível de capota fechada?” Menos mal que nas duas últimas vezes o chefe ignorou a garoa. Confesso que a umidade danificou um pouco meu delicado tecido. Mas pelo menos pude saudar o povo na esplanada, do jeito que eu gosto.
Antes que alguém cometa a deselegância de perguntar, vou logo dizendo: tenho 100 anos, recém-completados essa semana. Qual o problema? Sou mais jovem que o Niemeyer. Está na minha certidão de nascimento: Decreto nº 2.299, de 21 de dezembro de 1910. Faço saber que o Congresso Nacional decretou e eu sancciono a resolução seguinte: Art. 1º. Como distinctivo de seu cargo o Presidente da Republica usará, a tiracollo, da direita para a esquerda, uma faixa de seda com as cores nacionaes, ostentando o escudo da Republica bordado a ouro. A faixa, cuja largura será de 15 centimetros, terminará em franjas de ouro de 10 centimetros de largo e supportará, pendente do porto de cruzamento das suas extremidades, uma medalha, de ouro, mostrando no verso o mesmo escudo de que falla o artigo anterior e no anverso o dístico - Presidencia da Republica do Brazil.
Assina o marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, na data do 88º ano da Independência e 21º da proclamação da República. Já que esticamos a prosa, vou falar um pouco mais de mim. A medalha que eu tenho é de ouro 18 quilates, cravejada com 21 brilhantes – o número de toques de canhão disparados em honra aos chefes de Estado. Não foi para fazer fita que o marechal Hermes decidiu me sancionar. Militar, ele era sobrinho do marechal Deodoro da Fonseca, que destronou dom Pedro II e foi o primeiro presidente do Brasil. Olha, não é fácil competir com um imperador. É coroa, cetro, anel, manto... O povo se deslumbra. Já reparou que até hoje todo o mundo diz “rei do futebol”, “rei da soja”, “rei Roberto”? Ninguém fala em “presidente” de nada, embora existam muitos aí com o rei na barriga.
Então, quando o marechal Hermes assumiu, ele era o oitavo mandatário da República, mas as coisas não andavam assim tão estáveis. Havia um medo generalizado em relação à volta da monarquia. Até aqueles pobres diabos de Canudos, massacrados 13 anos antes, eram tachados de monarquistas. E o novo presidente, que vivia fardado desfilando fama de grosseirão, tinha sido eleito contra Rui Barbosa, um civil cheio de estilo e de oratória. O clima no País era de decepção, conta o historiador Boris Fausto. E convinha ao supremo mandatário trazer no peito, além das condecorações de guerra, um símbolo que marcasse a presidência civil. Para ninguém ter dúvida, Hermes ainda introduziu o Pavilhão da República, aquela bandeira verde que fica hasteada onde quer que o eleito esteja.
Poucos dias depois da posse, o primeiro presidente enfaixado enfrentou um motim de marinheiros. A Revolta da Chibata, contra os bárbaros castigos corporais que eram hábito na Marinha, só foi debelada à custa de prisões e mortes. E, em 1912, veio a Guerra do Contestado, com a população cabocla lutando nas ruas contra as forças federais – encrenca que sobreviveu a seu mandato, até 1916, quando eu já estava envolvida no sucessor Venceslau Brás. “É uma época em que os símbolos e modelos republicanos penam para se afirmar e intelectuais como o escritor Lima Barreto falam na ‘República que não foi’”, me disse a antropóloga Lilia Schwarcz. Faz sentido.
Com que roupa? Onde estava mesmo? Eu me enrolo toda nessas reminiscências. Ah, no meu tecido danificado pela chuva nas últimas posses. Para ser franca, antes mesmo eu já estava meio rota. Tanto que o cerimonial da Presidência, que é o setor responsável pela minha guarda, decidiu que era hora de dar uma repaginada no meu visual. Mas acha que é fácil mexer com armas e símbolos nacionais? Tiveram que montar uma comissão para estudar os farrapos de minha biografia e costurar o processo licitatório de minha renovação. Em 2006, uma empresa de confecção de Brasília venceu a concorrência por R$ 38 mil. O preço alto deu pano pra manga. Não dou palpite nessa coisa de governo, que o meu negócio é de Estado. Mas queriam o quê? Que fosse na faixa?
Melhorei, mas a bem da verdade, depois da renovação ninguém rasgou elogios. Fiquei uma faixa meio pedestre, por assim dizer. O que mais me magoou foi a reação do presidente Lula, a quem sempre tive como amigo do peito: “Eu não vou usar esse molambo no desfile da Independência de jeito nenhum”. Toca os assessores correrem para remendar o problema. O chefe da diretoria de documentação histórica da Presidência, Claudio Soares Rocha, se enfurnou nos livros e descobriu que o novo tecido, embora de seda como manda a lei, não era idêntico ao original. Além de brilhoso demais pro meu gosto, aquele cetim ficava mal-ajambrado no corpo – sem comparação com o chamalotado de seda pura de minha juventude.
"Nesse ponto, do alto de
meu centenário,
até que sou moderninha.
Gosto de variar, mudar de dono,
exercitar o desapego.
Romances não me faltaram."
Como quase ninguém faz mais esse tipo de pano no Brasil, o diligente Claudio garimpou numa pequena confecção de Americana, interior de São Paulo. Para transferir o Brasão da República e a medalha para a roupa nova, foi escalada Renata Barretto, uma restauradora do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Renata removeu os fios de ouro com bisturi, para não danificar a peça e bordou um a um no chamalotado. Também refez a emenda original dos tecidos, com as tiras verdes costuradas por baixo da amarela. O trabalho terminou em agosto de 2010 e ficou uma beleza. O presidente até brincou: “Dia 31, quando der meia-noite, não vou entregar a faixa. Estou pensando em colar a bichinha na barriga e sair correndo”. Eu, hein?
Ame-a e deixe-a. Sem ser pretensiosa: todo o mundo me deseja. Só que não fui feita para ser de ninguém. Nesse ponto, do alto de meu centenário, até que sou moderninha. Gosto de variar, mudar de dono, exercitar o desapego. Romances não me faltaram. Getúlio chegou como quem não queria nada e praticamente me tomou à força em 1937. Depois voltou, se desculpou e acabou me conquistando. Senti sua falta quando ele se foi daquele jeito trágico. Já o Jânio fazia o gênero difícil: te quero, não te quero mais... Ele me deu o fora no dia 22 de agosto de 1961, mas só saiu de perto de mim no dia 26. Esperando, sei lá, que eu me rebaixasse, implorasse. Lo siento, cariño.
Diz a lenda que quando me arrancaram de Jango, seu cunhado, Leonel Brizola, me levou para o exílio na esperança de devolvê-la ao legítimo dono. Mas não me lembro bem disso não. Deve ser a idade... Veio, então, aquele período que não gosto nem de lembrar. Eu, passando do general da vez para outro. De todos, Médici foi quem me tratou pior. Figueiredo também era complicado. Foi o primeiro que parou de me usar debaixo da casaca, como sempre fui acostumada, e me pôs por cima do terno: casaca, para ele, só a de equitação. Em 1985, ele não teve nem a delicadeza de me entregar ao Sarney.
"Vai ser as 16h30 do dia 1º de janeiro,
quando a mineira Dilma Rousseff chegará ao
Palácio do Planalto,
depois de fazer o juramento
constitucional no Congresso.
Quero estar esperando no alto da rampa,
ainda abraçada com Lula.
A primeira dona. Hoje, já me habituei a ficar em cima do terno. Não é tão elegante, mas é mais jovial. Só Collor de Mello fez questão de me vestir à moda antiga. O Itamar, esse nem foto oficial comigo fez. Azar dele. O que me traz, enfim, aos amores da maturidade: FHC, tão fino e cultivado, e Lula, amante apaixonado. Na passagem de um para outro, em 2003, fiquei tão nervosa que quase derrubei os óculos do príncipe. Ainda bem que o sucessor segurou. Um fim de relacionamento bem civilizado, eu diria.
Agora, faltam seis dias para uma nova cerimônia de posse e, pela primeira vez, de uma mulher. Imaginem minha emoção. Aqui, dentro do cofre da sala 302 do terceiro andar do Palácio do Planalto, mal contenho a ansiedade. Há anos guardam o cofre no banheiro privativo do embaixador chefe do cerimonial – o que não é lá muito glamouroso –, mas a minha nova grande hora está para chegar.
Vai ser as 16h30 do dia 1º de janeiro, quando a mineira Dilma Rousseff chegará ao Palácio do Planalto, depois de fazer o juramento constitucional no Congresso. Quero estar esperando no alto da rampa, ainda abraçada com Lula. De lá, vamos os três direto para o parlatório, onde, pela 42ª vez na história da República, o poder presidencial será passado de uma pessoa para outra. Vestida de mim, Dilma dará posse aos ministros às 18h30, descerá a rampa e então embarcará no Rolls-Royce presidencial. Se São Pedro ajudar, vou me exibir com a presidente em carro aberto para o povo todo na capital federal. Minha única preocupação, enquanto faixa, é estar bem bonita e composta. Vai que eu desato a chorar...
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* Ivan Marsiglia é jornalista, bacharel em Ciências Sociais e editor assistente do caderno Aliás.
* Ivan Marsiglia é jornalista, bacharel em Ciências Sociais e editor assistente do caderno Aliás.
Fonte: Estadão, acesso 26/12/2010
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