JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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Por conta da WikiLeaks,
o jornalismo transformou-se no
latão de lixo de um delinquente cibernético
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SOU UM crédulo. A culpa é da literatura. Alimentado a Graham Greene e seu discípulo Le Carré durante a adolescência, afiei os caninos quando ouvi falar da WikiLeaks.
Que maravilha! Um site publicava as maiores conspirações mundiais das maiores potências mundiais! Salivei, como um cachorro amestrado. Não existe bom jornalismo sem bons vazamentos de informação. Não existem bons leitores sem carne proibida e suculenta para mastigar.
Desilusão. Indigestão. A WikiLeaks soltou mais de 250 mil telegramas do Departamento de Estado norte-americano, e a comida é rançosa. Eu esperava um complô de Washington para dominar o mundo. O império do mal é o império do mal.
Encontro conversa de cabeleireiras. Cristina Kirchner é mentalmente instável (bocejo). Chávez é louco (idem). Berlusconi gosta de orgias (abençoado homem). Gaddafi é "hipocondríaco" (bem-vindo ao clube) e gosta de viajar acompanhado por uma "voluptuosa" enfermeira ucraniana (partilha, irmão, partilha). Sarkozy é "irritadiço" e "autoritário" (é sério?). Putin e Medvedev são o "Batman" e o "Robin" da política internacional (mas que gay!).
Quero o meu dinheiro de volta. Se os segredos da diplomacia americana se resumem a isso, eu começo a temer pelo futuro do império do mal. Ou será do bem?
Aliás, não temo apenas pelo futuro da América. Temo pelo futuro do próprio jornalismo. Tempos houve em que os jornalistas tinham a nobre função de vigiar e criticar o poder. Uma tarefa necessária, solitária, tantas vezes perigosa, que implicava "pesquisa", "filtragem", "interpretação". Uma fonte era uma fonte. O início do processo, não o seu fim preguiçoso.
Com a WikiLeaks, o jornalismo transformou-se no latão de lixo de um delinquente cibernético. Não existe "pesquisa", "filtragem" ou "interpretação" alguma. Os jornalistas foram cúmplices da pirataria e da espionagem de um foragido. De Watergate para a WikiLeaks: o meu reino não é mais deste mundo.
Alguns dirão que exagero. Que existem informações "relevantes", para usar o termo preferido dos apedeutas. Saber que a China não se opõe à unificação das Coreias é "relevante". Saber que os Estados Unidos espiam nas Nações Unidas é "relevante". Saber que os países árabes temem o Irã e pedem a Wa- shington, privadamente, para bombardear os aiatolás é "relevante".
*Ao destruir a confidencialidade,
a "pacifista" WikiLeaks está convidando
o mundo para
se calar em privado.*
Será? Mas nada disso é novidade. Que os árabes e, em especial, os sauditas, temem um Irã nuclear tanto ou mais que Israel é o básico da política internacional do Oriente Médio. Que a China, desde Deng Xiaoping, vê com bons olhos uma "reunificação pacífica" das Coreias, eis um truísmo que se encontra em qualquer livro de relações internacionais para principiantes.
E que os Estados Unidos espiam nas Nações Unidas, enfim, nem merece comentário: não existe país com pretensões de hegemonia global, ou até regional, que não faça o mesmo, ou pior. E, quando o assunto é o manicômio das Nações Unidas, criminoso seria não espiar.
Infelizmente, é pouco provável que a WikiLeaks nos informe sobre os pecadilhos das outras potências. A WikiLeaks, três anos atrás, prometia revelar todos os abusos nos mais variados cantos do mundo. Aplaudi. Precocemente. Pelo visto, a coragem justiceira de Julian Assange parou nos Estados Unidos.
Conclusões? A melhor delas foi resumida por James Rubin, antigo membro da administração Bill Clinton, que escreveu na revista "The New Republic" sobre a ironia da WikiLeaks. Que ironia é essa?
Simples: a WikiLeaks acredita que a transparência total é o único caminho para um mundo mais seguro e pacífico. Fatalmente, a WikiLeaks ignora que um mundo mais seguro e pacífico passa, muitas vezes, pelos esforços secretos da diplomacia. E não há diplomacia sem confidencialidade, lembra Rubin.
Ao destruir a confidencialidade, a "pacifista" WikiLeaks está convidando o mundo para se calar em privado. E para resolver as suas discórdias e conflitos em público. Por meios, digamos, menos civilizados. E mais primitivos.
Faz parte da mentalidade radical ver a realidade em preto e branco, sem notar que a salvação, às vezes, se pinta com cores mais cinzentas.
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*José João Pereira Coutinho (Porto, 1 de Junho de 1976) é um jornalista e comentador político português.Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, acabando por se licenciar em História (na variante de História da Arte), pela Universidade do Porto. Prossegiu estudos na Universidade Católica Portuguesa, onde se doutorou em Teoria e Ciência Política Contemporânea e é, actualmente, Professor Convidado. Articulista da Folha.
jpcoutinho@folha.com.br Fonte: Folha online, 07/12/2010
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