Entrevista: Luiz Eduardo Soares
(Elite da Tropa)
Autor: Danillo Ferreira
O campo da segurança pública no Brasil, historicamente, foi pouco explorado tanto academicamente quanto em termos de políticas públicas eficientes. O resultado dessa desídia é o caos que vem se arrastando já faz alguns anos, para o qual eu diria que só viemos nos despertar a pouco tempo (mais academicamente do que nas políticas públicas eficientes). Se me pedissem um nome para definir essa mudança de postura, onde a segurança pública se torna um assunto a ser tratado de modo científico, responsável e realista, eu diria, sem sombra de dúvidas, “Luiz Eduardo Soares“.
Co-autor do prestigiado “Elite da Tropa“, e do recém-lançado “Espírito Santo“, Luiz Eduardo Soares, que é antropólogo, tem vasta atuação como pesquisador e gestor de segurança pública. Seu currículo conta com experiências como a de Secretário Nacional de Segurança Pública e Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Hoje é professor da UERJ e da Estácio de Sá, e assessor da prefeitura de Nova Iguaçu-RJ.
Na entrevista concedida exclusivamente ao Abordagem Policial, Luiz Eduardo fala de vários temas ligados à segurança, emitindo sua visão sobre o exercício dos direitos humanos pelas polícias brasileiras, a descriminalização das drogas, o militarismo e a unificação nas polícias, o ciclo completo de polícia etc.
É uma entrevista fundamental para qualquer interessado em segurança pública. Espero que nossos leitores façam bom proveito:
Abordagem Policial: Em que nível está o desempenho dos Direitos Humanos pelas polícias brasileiras? Estamos perto ou longe de alcançar os ideais humanitários/cidadãos?
Luiz Eduardo: Acho que há uma variação enorme. A tal ponto que qualquer generalização seria leviana e correria o risco de ser injusta. Até porque um de nossos problemas é exatamente a inexatidão, a carência de dados qualificados, de informações rigorosas, de indicadores consensuais e confiáveis, de métodos eficientes de mensuração, de critérios universais e transparentes de avaliação. De todo modo, deixando de lado a variação entre instituições, regiões, núcleos no interior das instituições, creio que todos concordariam com o fato de que há indícios muito recorrentes e preocupantes apontando na direção do desrespeito contumaz e ostensivo aos direitos humanos cometido por policiais. Por outro lado, não paira nenhuma dúvida quanto ao desrespeito perpetrado pelo Estado (via governos, secretarias e instituições policiais) contra os profissionais das polícias – a começar pelos baixos salários, com raras exceções, e pelo regimento disciplinar inconstitucional das PM’s).
Abordagem Policial: Não é incomum se ouvir entre policiais que no Brasil “Direitos Humanos são apenas para bandidos”. O que leva esses profissionais a pensar desse modo? Existe, realmente, um descuido em relação a eles?
Esse é um dos problemas chave. Enquanto perdurar essa visão, não avançaremos. Afinal, os policiais são ou deveriam ser, por definição, os primeiros e maiores guardiões dos direitos humanos. Existem para isso: zelar pelas liberdades e pelos direitos, sobretudo o direito elementar à vida. Este último só pode ser transgredido quando está em jogo a legítima defesa da própria vida e da vida de terceiros, ou seja, nada justifica a perda de uma vida senão a proteção de outra ameaçada pela primeira. As polícias, no Estado Democrático de Direito, enquanto instrumentos de mobilização comedida da força, em nome do Estado, garantem o monopólio legítimo do uso da força por parte do Estado – o que beneficia a cidadania, bloqueando despotismos – e garantem o cumprimento do contrato social, traduzido em determinada legalidade. Claro que há desigualdades, opressões e que o contrato costuma ser injusto, mas a virtude do Estado Democrático de Direito é prover meios e normas para que a luta contra as desigualdades e pela radicalização da própria democracia prescinda da violência, cujo império termina por gerar situações tirânicas, independentemente das motivações originais. Não há legalidade democrática divorciada dos direitos humanos e não há polícia aliada aos princípios de justiça enquanto equidade sem o respeito à legalidade democrática e, portanto, aos direitos humanos. Por isso, é uma insensatez para quem preza a justiça e a democracia desprezar a grande plataforma axiológica (isto é, valorativa) de dimensões universais que são os direitos humanos, que sintetizam o melhor de nossas tradições religiosas, humanistas e políticas. Desprezar esses valores é condenar-se, inapelavelmente, à barbárie e às tiranias.
Não há nem pode haver qualquer contradição entre segurança pública e respeito aos direitos humanos – lembremo-nos de que o Brasil é signatário das declarações internacionais e que nossa Constituição reitera os princípios dos direitos humanos. Tanto é verdade que as polícias ensinam seus membros a adotar o gradiente do uso da força, o qual codifica os procedimentos que devem ser empregados seja por conveniência técnica, seja por sua compatibilidade valorativa e legal com a Constituição e os DHs.
Lamentavelmente, estamos longe de uma compreensão adequada dessa problemática, no interior das polícias, na mídia, na sociedade e até nas ONGs, por ignorância de alguns e por comportamentos equivocados de uns e outros – o que inclui falhas indiscutíveis de entidades que defendem os direitos humanos, as quais, quase sempre adotam dois pesos e duas medidas, negligenciando a vitimização de policiais e de suas famílias, e falhando em lhes prestar a mesma solidariedade que emprestam às vítimas civis, tanto de crimes quanto de brutalidades policiais.
Os erros das entidades estimulam uma hostilidade desnecessária, equivocada, de consequências funestas para todos. E o desrespeito aos direitos humanos dos policiais, por parte das próprias polícias e dos governos, acaba jogando mais lenha nessa triste fogueira.
Abordagem Policial: Boa parte dos policiais brasileiros já possuem ou estão cursando o ensino superior. Porém, ainda se percebe certa resistência no âmbito das polícias para absorver o posicionamento dos acadêmicos, chamados de “policiólogos”, em contraposição à experiência, aos “anos de polícia”. Por que isso ocorre?
Luiz Eduardo: Vejo esse processo como um fenômeno natural. Acontece o mesmo do outro lado, com sinais invertidos: na universidade, é comum o preconceito contra policiais e contra os que estudam segurança e polícias. De novo, isso expressa a confluência entre ignorância, ressentimentos históricos não elaborados (faltou à nossa anistia o momento da verdade) e práticas negativas de instituições policiais, de governos e de movimentos sociais. Acredito que esse quadro já esteja mudando, ainda que lentamente. Talvez eu tenha sido o primeiro pesquisador acadêmico a pular o muro e assumir funções de gestão policial e de segurança. Para muitos, dos dois lados do muro, foi chocante, em 1999. Dez anos depois, já temos vários colegas que vieram da universidade ou da militância em direitos humanos e que ingressaram no campo da prática das políticas de segurança pública, nos estados, municípios e mesmo na União. Acredito que daqui a dez anos isso será tão comum quanto é em outros países e em outras áreas. Os preconceitos e o corporativismo obscurantista são manifestações atrasadas e inteiramente insustentáveis. O Brasil precisa melhorar na segurança pública tanto quanto já logrou avançar em outros setores. Bobagens do século passado não têm mais lugar.
"A iniciativa de tornar o comércio,
a produção e o consumo
de algumas um tabu ou um crime é arbitrária,
segue regras simbólicas e culturais e
produz vários efeitos, preconceitos e estigmas.
Não há base científica para proibição."
Abordagem Policial: Como você avalia a atuação do Governo Federal através do PRONASCI?
Luiz Eduardo: O esforço tem sido meritório e digno de reconhecimento. Admiro o ex-ministro Tarso Genro, com quem trabalhei na prefeitura de Porto Alegre, em 2001. Devo a seu convite, mediado por meu querido amigo, Marcos Rolim, a possibilidade de regresso ao Brasil – naquela época eu não poderia retornar ao Rio de Janeiro e vivia nos EUA, sonhando em voltar para meu país. Entretanto, como tive oportunidade de dizer ao próprio ministro Tarso, acho quase impossível aplicar um plano inter-setorial com a atual estrutura do Estado, dividido (desde a União aos municípios) em segmentos corporativos que disputam recursos e poder (os ministérios e as secretarias). Sempre repito que segurança é matéria complexa e multidimensional, que exige políticas inter-setoriais, as quais necessitam, por sua vez, de um novo sujeito da gestão pública, uma nova estrutura de Estado, apto a implementar programas multidimensionais. Claro que não pdemos cruzar os braços e esperar que uma questão assim complexa se resolva. Portanto, admiro a iniciativa do Pronasci. O que entretanto falta ao Pronasci? A meu juízo, falta o enfrentamento da questão decisiva, sine qua non: a problemática do modelo policial e/ou da arquitetura institucional da segurança pública no Brasil. Tomemos o caso do Rio. De que adianta investir em programas preventivos se as polícias continuam sendo as mais mal pagas do país, se desdobra entre o serviço público e o bico na segurança privada, se perde na corrupção, na cumplicidade com o tráfico, na brutalidade irresponsável e no protagonismo criminal via milícias? De que adianta desenvolver centenas de bons projetos locais quando a questão policial e do modelo institucional permanecem intratadas? Tudo acaba em festas de inaugurações e num varejão inócuo.
"O que mata não são as drogas e seu tráfico
(as mortes por overdose são mínimas,
diante das provocadas por
ingestão excessiva de álcool, cigarros, como já disse),
mas as armas e seu tráfico."
Abordagem Policial: Em um de seus livros (Segurança tem Saída), você chega a sugerir um tratamento com a questão das drogas direcionado à descriminalização. Você continua com essa opinião?
Luiz Eduardo: Sim, defendo a descriminalização das drogas que hoje são proibidas e cujo comércio e consumo, hoje, são ilegais ou criminalizados. A pior droga (mais devastadora que o crack, do ponto de vista numérico) é o álcool, depois o cigarro. Há mais de 15 milhões de alcoólicos ou alcoólatras no Brasil. Enquanto não propuserem sua proibição não vou levar a sério nenhuma opinião proibicionista. Mas sei que isso não acontecerá, porque ninguém será louco a ponto de propor uma sandice dessas. Por quê? Porque se proibíssemos o álcool, teríamos o mesmo alcoolismo e, além disso, passaríamos a ter o tráfico de bebidas, aumentando a violência urbana e turbinando o tráfico de armas, nosso maior problema em matéria de segurança pública. O fato é o seguinte (e posso dizê-lo, agora, assumindo a condição de antropólogo): a humanidade sempre conviveu e conviverá com substâncias psico-ativas. A iniciativa de tornar o comércio, a produção e o consumo de algumas um tabu ou um crime é arbitrária, segue regras simbólicas e culturais e produz vários efeitos, preconceitos e estigmas. Não há base científica para proibição. Há dois níveis distintos e interligados que devem ser contemplados nessa discussão: um nível pragmático e um nível ético-político ou filosófico. Do ponto de vista pragmático, meu raciocínio é simples e dificilmente contestável: o acesso às drogas ilegais existe, a despeito da proibição legal. Essa afirmação se aplica a todo o mundo não-islâmico e não-totalitário. Não se resume ao caso brasileiro. Veja os EUA. O país empenhou 100 bilhões de dólares, nos últimos 5 anos, na guerra às drogas, e não conseguiu acabar com o tráfico e o consumo. O problema não é apenas brasileiro. Não se trata de incompetência de nossas polícias. Nada disso. O problema é mundial. E por que é assim? Porque não há como controlar o mercado, quando há demanda, a menos que se construa um Estado totalitário (e mesmo assim, ele tem prazo de validade, como a história provou). Esta é uma tremenda ironia: os EUA venceram a guerra fria, demonstrando que o mercado pode ser disciplinado, regulado, mas não abolido. E no entanto, parecem acreditar que abolirão o mercado das drogas. Claro que não é bem assim. Os policiais mais experientes e especializados, nos EUA, sabem perfeitamente de tudo isso que estou escrevendo. Mas há a necessidade de que se erga um inimigo para que a unidade interna não se afrouxe. Depois da guerra fria e antes do Iraque, as drogas foram úteis. E quando se investem 100 bilhões alguém ganha com isso. Muita gente ganha com isso. Todo um complexo industrial-militar, que vai de veículos a ferramentas de comunicação.
"Veja os EUA.
O país empenhou 100 bilhões de dólares,
nos últimos 5 anos,
na guerra às drogas,
e não conseguiu acabar com o tráfico
e o consumo.
O problema não é apenas brasileiro.
Não se trata de incompetência de nossas polícias.
Nada disso.
O problema é mundial."
Bem, o fato é que o acesso existe em cada esquina de qualquer grande cidade (e não só). É incontrolável. E não me venham com a ingenuidade das campanhas contra o consumo, para esfriar a demanda. Ora bolas, se isso fosse tão banal, não haveria problema. Portanto, olhemos de frente a realidade. Ela é incontornável. Sendo assim, a verdadeira pergunta realista e pragmática não é: devemos ou não proibir o acesso às drogas? Mas: dado que o acesso é um fato, em que contexto legal-institucional preferiríamos que esse fato ocorresse? Em que contexto institucional esse fato produziria menos danos? O contexto atual – em que drogas ilícitas são questão da justiça criminal – gerou os resultados que estão aí. O pior deles, no Brasil: o casamento entre as drogas e as armas. Esse é nosso trágico diferencial. Em NY, o traficante que vende drogas na esquina fará tudo para não estar armado, porque isso só lhe complicaria a vida e nenhum benefício lhe traria. No Brasil, por razões que eu e muito colegas já estudaram, existe esse casamento – que tem de ser imediatamente desfeito. O que mata não são as drogas e seu tráfico (as mortes por overdose são mínimas, diante das provocadas por ingestão excessiva de álcool, cigarros, como já disse), mas as armas e seu tráfico.
O segundo nível é ético-político ou filosófico. Cada um tem sua posição. No meu caso, não admito que o Estado tenha ingerência sobre a vida privada, desde que as decisões individuais não provoquem danos sobre terceiros.
Abordagem Policial: Em termos de estrutura policial, o que você sugere para o Brasil? Militarizada ou desmilitarizada? De Ciclo Completo? Unificadas (Civil e Militar)?
Luiz Eduardo: Ciclo completo, sim, sem dúvida. É central e urgente. A divisão de ciclo é nossa jabuticaba: originalidade nacional. E comprovadamente um desastre. Mas a unificação de ciclo não deve ser confundida com unificação entre instituições. No Brasil, a unificação institucional uniria deficiências e vícios institucionais, e tenderia a anular virtudes. Prefiro modelo municipalista, com muitas polícias, cada uma delas de ciclo completo – começando pelos municípios maiores. O problema da desconexão atual e da desintegração nada tem a ver com a quantidade de instituições (temos só 56 ou 57, no Brasil; nos EUA, há 21 mil polícias). Para que o número não seja problema, é preciso que todas as instituições atendam a condições elementares de qualidade, nas áreas de recrutamento, valorização profissional, formação, capacitação e treinamento, gestão de conhcimento, gestão institucional, perícia, controle inter e controle externo, e articulação com políticas inter-setoriais.
Quanto a ser militar ou não, acho que podemos ter ambos os tipos. A questão não é ser ou não militar, mas COMO ser militar. O cordão umbilical com o Exército, previsto no artigo 144 da Constituição, tem de ser cortado; os estratos hierárquicos, diminuídos; o regime disciplinar, alterado.
Por outro lado, a posição de delegado tem de ser parte de uma carreira única na PC. Um posto a ser obtido, internamente. As duas polícias, hoje, estão divididas ao meio: praças e oficiais; delegados e não-delegados. Isso é péssimo. O inquérito policial é uma peça formalista e barroca, inteiramente obsoleta.
Abordagem Policial: Você se tornou um Twitteiro dedicado (@luizeduardosoar). Como vê o fenômeno que passou a ser denominado “Blogosfera Policial”, onde policiais estão se utilizando da internet (blogs, twitter e outras redes sociais) para discutir segurança e até fazer denúncias?
Luiz Eduardo: Acho da maior importância. É um fato histórico. As mudanças nas instituições da segurança pública têm de profundas e elas não acontecerão enquanto os policiais não se tornarem seus condutores e protagonistas. A blogosfera começa a brir espaço para esse avanço.
Abordagem Policial: Quais são seus projetos atuais, em termos de produções na área de segurança pública? É verdade que vem aí um “Elite da Tropa 2″?
Luiz Eduardo: Estou inteiramente dedicado a escrever o Elite da Tropa 2. Por ora, é isso.
Abordagem Policial: Por fim, deixamos um espaço para que você faça as considerações que desejar, e pedimos que indique uma obra essencial para um policial ler (pode ser de sua autoria)…
Luiz Eduardo: Gostaria muito que os policiais conhecessem minha experiência no Rio de Janeiro, em 1999. Para isso, o caminho seria a leitura do livro “Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro” (editora Companhia das Letras, 2000). Quem tiver curiosidade em conhecer em detakhes minhas propostas para as polícias e meu trabalho teórico, a melhor fonte é meu livro “Legalidade Libertária” (editora Lumen-Juris, 2006).
______________________________Fonte: http://abordagempolicial.com/2010/03
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