Mino Carta*
Foto: Ralph Gatti/AFP
A tragédia de grandes artistas como Monicelli não é a doença,
mas viver em um mundo cada vez mais estranho.
Tentemos melhorar o mundo, se ainda for possível, como está vai muito mal. Assim falou, recentemente, ao abrir um congresso de geriatria, Mario Monicelli, suicida na segunda 29 de novembro, aos 95 anos. Lúcido e saudável até pouco tempo atrás, ao ser alcançado pelo câncer atirou-se pela janela do hospital. Mas a tragédia maior era viver em um mundo cada vez mais estranho.
Monicelli é criador de cinema da mesma estirpe de Vittorio De Sica, Bergman, Jean Renoir, Fellini, John Ford e por aí afora. Participou de um período de ouro puro do cinema mundial, o neorrealismo italiano. Soube entregar-se, porém e também, a evocações oníricas, como Fellini e tantos outros habilitados a estabelecer no set fabulosas atmosferas de sonho.
Mesmo ao seguir esse gênero de impulsos da imaginação, como em L’Armata Brancaleone, Monicelli é um poeta do concreto, e não se deixem enganar se o tom aparentemente é de comédia, digamos, em I Soliti Ignoti, que aqui passou como Rufufu. Comédia, sim, mas da própria vida, com suas desgraças e alegrias, misérias e redenções, e ao mesmo tempo relato de um momento de profunda mudança: no final dos anos 50, os pequenos meliantes fracassados acabam por ganhar emprego na construção civil.
Não se fazem criadores de cinema como antigamente. Há exceções, está claro, os irmãos Coen, por exemplo. É compreensível, contudo, que Monicelli se percebesse deslocado no seu ambiente e fora dele. Não se fazem artistas em geral, escritores, pensadores como antigamente. Representantes variados da inteligência do homem.
Impressionou-me muito, anos atrás, uma visita ao museu romano do Palácio Massimo (sobrenome de uma família principesca). Exibe exemplos da pintura da antiga Roma, de excelente qualidade no primeiro século depois de Cristo. Os afrescadores não somente dominavam o desenho e as cores, mas também a perspectiva. No século seguinte começa a mudança. Para pior. Mais três séculos, perdeu-se tudo, a perspectiva inclusive.
"Depois da Renascença,
do Iluminismo e
das revoluções políticas, econômicas e sociais
veem a nação terráquea
como um camarão,
ou um ex-conquistador em retirada."
Segundo as datas que a história se incumbe de fixar com precisão exagerada, estávamos no início da Idade Média. Para recuperar a perspectiva, e não me permito aqui a metáfora, será preciso esperar mil anos. No presente momento, este que vivemos, uma serigrafia de Andy Warhol é vendida por dezenas de milhões de dólares. Mas poderia anotar que Paulo Coelho escreve best sellers planetários, ou que o filme Avatar bate recordes de bilheteria e O Gladiador e Titanic ganham o Oscar.
Estamos a dar os primeiros passos de uma época escura, de progressiva decadência? Haverá quem contraponha aos sinais negativos os avanços científicos e tecnológicos, alegação discutível, sobretudo em relação a estes. Eu me permito ter medo dos computadores, temo que me engulam com sua bocarra e passo ao largo. E que dizer da Wikipédia e que tais, e das centenas de milhões, talvez bilhões de seres humanos já deglutidos? Quanto aos progressos da ciência, quem hoje está em condições de se incomodar se o homem se encaminha a isolar a antimatéria?
Pois é, sejamos concretos, e encaremos então a força avassaladora do dinheiro e da doutrinação diuturna perpetrada por instrumentos da comunicação cada vez mais afiados. E excepcionalmente eficazes na destruição do espírito crítico onde, porventura, sobreviva. Avassaladora, a força, e altamente retrógrada. Nem se fale do desastre do neoliberalismo e de como crescem no mundo todo, em sintonia, pobreza e ignorância. Constatem: até o futebol, nossa empolgação predileta, não é mais aquele.
O Caso WikiLeaks fica à perfeição na moldura. É demonstração irretorquível do ínfimo nível do QI do império, enquanto o mundo se engalfinha no insano confronto entre raças e religiões. Cidadãos como Mario Monicelli, que conhecem seu mister de cor e salteado e sabem de muitas coisas mais, enxergam o ocaso das visões do mundo e da vida cultivadas séculos a fio. Depois da Renascença, do Iluminismo e das revoluções políticas, econômicas e sociais veem a nação terráquea como um camarão, ou um ex-conquistador em retirada.
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* Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br
Fonte: REvista Carta Capital online, 04/12/2010
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