Para economista, companhias de abastecimento priorizam lucros imediatos e não investem em saneamento
Uma
lógica mercantil, voltada para a produção de lucros e dividendos
imediatos, em detrimento de objetivos de longo prazo, e a ausência de
uma política nacional articulada de saneamento estão entre as causas da
crise hídrica vivida pelo Estado de São Paulo, principalmente no Sistema
Cantareira, que abastece a capital, afirma o professor Eduardo Fagnani,
do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Se você observar os dados da
Sabesp agora, ela continua dando lucros enormes, que ela distribui aos
acionistas”, disse Fagnani. “Como o maior acionista é o Estado de São
Paulo, o que acontece? Uma inversão da lógica social: em vez de o Estado
financiar, via arrecadação de impostos, o saneamento, o que acontece é o
lucro da Sabesp financiar o Estado”.
A Sabesp, ou Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo, é uma empresa de capital
aberto e ações negociadas em bolsa. O governo paulista detém o controle
da empresa, com 51% das ações. O restante das ações é detida por grandes
grupos financeiros internacionais e nacionais.
Na opinião do
pesquisador, a distribuição de dividendos, somada ao monopólio do
saneamento – os clientes da Sabesp não podem simplesmente trocar de
fornecedor, caso estejam insatisfeitos com o serviço – ajuda a explicar a
ausência de investimentos que poderiam ter mitigado a crise
desencadeada pela seca recente. “O desperdício de água no Japão é 3%, na
Alemanha é 5%, em São Paulo, na Sabesp, é 35%. E por que a Sabesp não
investiu nisso? Em reduzir a perda de 35% para 10%? Por que a Sabesp,
nos últimos 20 anos, não investiu, por exemplo, na redução dessas
perdas?”, questiona Fagnani, para logo em seguida sugerir uma possível
resposta:
“O saneamento, em geral, é monopólio. Quer dizer, não
tem concorrência – então, por que eu vou investir? Porque, o
investimento reduz a parcela de dividendos que anualmente é distribuída
aos acionistas”, argumenta.
“Se tivessem investido para redução
de perdas, provavelmente a Cantareira não estaria no problema em que
está. Mais de um Cantareira é jogado fora em perdas e ineficiências da
gestão privada. Por que acontece isso? Há vários motivos, mas com
certeza, eu acho que também tem a ver com essa lógica privada e a
pressão pela distribuição do lucro aos acionistas”.
NEOLIBERALISMO
“A
privatização está ligada à agenda neoliberal que passou a ser
hegemônica no mundo a partir de 1980, quando a ideia é a seguinte: reduz
o Estado; o Estado regula; e, o mercado opera. Você abre a economia
para que as empresas internacionais venham atuar no Brasil”, disse
Fagnani.
“A justificativa era que o Estado estava quebrado, o
setor privado era eficiente e tinha recursos para investir. Mas isso era
só um discurso: na verdade, isso se dá para responder às necessidades
do capital financeiro. O capital financeiro busca valorização, e obtém
isso onde? Entrando num setor que é essencialmente público; e o
saneamento não fugiu à regra”.
O pesquisador relata como, no caso
brasileiro, as empresas estaduais de saneamento básico, criadas durante
a ditadura militar, foram sucateadas ao longo do período de inflação
alta dos anos 80, até que a privatização ou abertura de capital
aparecesse como uma espécie de tábua de salvação do setor, na década
seguinte.
SUCATEAMENTO
“Em 1971 a
ditadura cria o Planasa, Plano Nacional de Saneamento. Esse plano cria,
em cada Estado, uma concessionária estadual, e obriga os municípios a
entregar a concessão para a concessionária estadual. Os municípios foram
obrigados, pela ditadura militar”, explica Fagnani. “Quem não desse a
outorga às concessionárias estaduais era penalizado, não tinha direito a
certos financiamentos, havia uma coerção. Como resultado, 90% dos
municípios brasileiros fizeram isso”. Essas concessionárias passam a
ser, então, o carro-chefe do saneamento básico no Brasil.
“Essas
empresas, aí que está um equívoco, também tinham que ser lucrativas: a
própria receita da tarifa tinha que sustentar a empresa e os
investimentos”, disse Fagnani. “Isso é que vai explicar, em parte, por
que essas concessionárias estaduais ampliaram mais a rede de
distribuição de água do que coleta e tratamento de esgoto: porque elas
tinham de dar lucro, e o investimento em distribuir água é mais barato e
o retorno é mais rápido. E, seguindo a lógica financeira, não se vai
atender onde a demanda é mais necessária socialmente, vai-se atender
onde é mais rentável, onde o retorno sobre o capital é maior. Então,
durante a ditadura militar você expande a água, mas a coleta de esgoto
fica estacionada”. Ainda hoje, em pleno século 21, lembra Fagnani,
menos de 50% da população vive em residências com coleta de esgoto; e,
mais da metade do esgoto coletado não é tratado, sendo despejado no mar e
nos rios.
Com a crise econômica e a hiperinflação dos anos 80, o
governo passa a administrar as tarifas cobradas pelas empresas
estatais, incluindo as de saneamento, como modo de tentar conter a alta
inflacionária. “Então a inflação era 100, você podia aumentar 60,
digamos”, exemplificou o pesquisador. “Depois de cinco, seis anos
assim, as estatais desmoronaram. E isso vai acontecer durante os anos 80
como um todo. Aí vem o sucateamento: não se investe nem em saneamento,
nem em água, nem em infraestrutura – e, quando chega a década de 90 com o
neoliberalismo, o prato está feito: dizem,’ veja, está tudo sucateado,
as empresas dão prejuízo, o Estado é ineficiente, etc., melhor
privatizar’. Mas ninguém quer saber por que elas davam prejuízo”.
No
Estado de São Paulo, a onda de privatizações e de abertura de capital
chega também às concessionárias municipais que haviam resistido ao
Planasa. “E o que se privatiza é o filet mignon, certo? Você vai
privatizar Limeira, Itu, e Ribeirão Preto, por exemplo: cidades que já
tinham infraestrutura, já tinham uma situação de saneamento muito melhor
que outras. O setor de saneamento básico, no Brasil, é isso: teve esses
quinze anos de regime militar, depois a crise e, nos anos 90,
privatiza. Privatiza ou sucateia o que restou do Estado”.
PLANEJAMENTO
O
produto dessa história, diz Fagnani, é um setor que, rigorosamente,
nunca foi alvo de uma política nacional pública pensada para o longo
prazo, mas viveu submetido a uma lógica de rentabilidade imediata.
“Quando chega em 2007, 2008, o governo apresenta o PAC (Programa de
Aceleração do Crescimento), que incorpora a questão do saneamento, o que
traz um aumento do investimento federal no setor”, disse o pesquisador.
“Mas a nova política nacional de saneamento básico só é aprovada em
2012. É uma política, do ponto de vista da lei, interessante, uma
tentativa de se pensar o saneamento como um problema nacional”.
O
problema, segundo Fagnani, é que a lógica do PAC – de liberação de
recursos mediante a aprovação de projetos de investimento – não é
exatamente compatível com as necessidades do programa de saneamento.
“Grande parte dos municípios que mais precisam não tem capacidade de
fazer isso, montar um projeto. Tem uma lógica de financiamento que é
melhor do que antes, sim, mas ainda não contempla o sistema nacional
como um todo, o planejamento do setor, um diagnóstico das carências
nacionais e regionais. Houve uma tentativa de reformular uma política
nacional de saneamento, que demorou muito tempo para sair e que não tem
avançado”.
FUTURO
Fagnani não vê
uma solução simples para o dilema do saneamento básico no Brasil,
dividido entre um setor privado voltado para a lucratividade e um setor
estatal subfinanciado e sucateado.
Ele afirma que as
privatizações e aberturas de capital tiraram dos governos a capacidade
de fazer política pública no setor. “Acho que o governo nem tem mais
instrumentos para fazer um grande plano. As estatais tinham seus
problemas, mas eram instrumentos de política econômica. Você vê essa
questão no setor de energia elétrica: sendo do Estado, ela gera energia,
gera tarifa e receita. Com essa receita, pode contratar investimento
privado, financiar uma construção de hidrelétrica, por exemplo. Quando
privatiza, perde-se isso. E aí o que acontece quanto se tem de investir
em infraestrutura? Concessão para o setor privado. Mas aí você tem só
quatro ou cinco grandes empresas capacitadas, e fica na mão delas”.
No
caso da água, a situação se agrava, por conta do monopólio das
concessionárias e do fato de que se trata de um item essencial para a
vida. “Do ponto de vista da concessionária privada, ela cobra a tarifa
e, se não fizer mais nada, já dá lucro. E a lógica privada é o lucro.
Não é outra. Quem vai fazer um investimento de grande porte? Não é a
concessionária privada. É o Estado. O setor privado vai fazer
investimentos pesados para buscar água? Não acredito. O que você tem é
ou o Estado sucateado, ou uma lógica privada antagônica a um projeto
para o país. E esse é o retrato de 500 anos de saneamento no Brasil”.
-------------------Texto: Carlos Orsi
Fotos: Antônio Scarpinetti
Edição de Imagens: Fábio Reis
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/623/logica-invertida-da-mercantilizacao
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