Ana Maria Machado*
Por mais que comentários rasteiros e truculentos dominem a internet, ela traz também uma profusão de análises mais sérias
Calma, não é o fim do
mundo. Nem mesmo o fim do país, por mais que seja desanimador constatar
que estamos atolados num lamaçal, com tantos sinais de estagnação
política e econômica, para não falar do chafurdamento moral. Talvez no
fundo do poço não haja um inevitável alçapão de profundezas obscuras e
estreitas, onde cairíamos entalados.
Depois de levado por mentiras bem orquestradas a se acreditar numa Ilha da Fantasia com a miragem do governo assegurando perfeições, o país está tendo de encarar fatos e reconhecer alguns aspectos da realidade que lhe esconderam ou que, por um bom tempo, preferiu não ver. E isso é bom. Por mais que comentários rasteiros e truculentos ainda dominem a internet, ela traz também uma profusão de análises mais sérias, de todos os matizes do espectro politico. Os pontos que levantam arejam o debate. Convidam a darmos mais atenção às ideias que à ideologia. Ou a lembrarmos que política é a arte da negociação em busca de consensos para o bem comum, e não a procura desenfreada de negociatas visando a aumentar os próprios bens.
É animador ver que começam a ser discutidas ( e até votadas, como a terceirização) alternativas ausentes da campanha eleitoral, embora façam parte de uma pauta recôndita indispensável ao desenvolvimento do Brasil e dos brasileiros, por mais que às vezes pareça haver um sinistro pacto implícito para ignorá-las.
Na área política, é salutar que agora se discuta o voto distrital, o distrital misto, o distritão, indo muito além das repetidas tentativas de imposição autoritária do voto em lista fechada, a ser referendado num plebiscito meio bolivariano. Ligada a esse ponto, a questão do financiamento das campanhas tende a se beneficiar do horror público diante das vergonhosas descobertas do que se escondia debaixo do que alegam ser doações de empreiteiras. O clamor das ruas, ao indicar o grau de saturação e indignação atingido, lembra aos políticos quanto os eleitores estão se sentindo enganados, descrentes, desesperançados. Outra boa ideia que volta a ser discutida é o fim da imunidade parlamentar (exceto para o que um congressista diz ou como vota). Fala-se novamente em retomar o exame da cláusula de barreira e outros dispositivos que limitem o número de partidos. E até mesmo se lembra de que parlamentarismo existe e tem qualidades.
E a ação de juízes confiáveis pressiona para diminuir a impunidade. Cumprindo as promessas implícitas da Constituição de 88, o Ministério Público agora atua de maneira muito mais responsável, deixando-se de lado práticas anteriores, quando um procurador ou policial plantava boatos na imprensa e depois se abria o caso a partir disso — para no fim ter de arquivar porque não se provava nada. A cooperação externa no combate à evasão fiscal revela o papel de bancos. Em breve podemos até aderir a campanhas internacionais para exigir o fim de paraísos fiscais, bela agenda para nossa política exterior.
Na economia, além de uma legislação trabalhista mais moderna e flexível, discutem-se temas que eram dogma — como o modelo de partilha, o de concessão ou um financiamento consorciado. A descrença que se reflete nos baixos índices de poupança e investimento, também consequência da ênfase no consumo, pode ser propícia à compreensão de mecanismos mais complexos e realistas. Após surfar no alto preço das commodities e na herança bendita que permitiu redistribuição de renda e avanços sociais, cada vez mais setores entendem que é preciso aproveitar o bônus demográfico do qual estamos quase saindo. Fala-se em mais realismo na Previdência e correção de privilégios. Manifestam-se até, de público, opiniões que antes davam linchamento: como a de que a baixa poupança está ligada à perspectiva de alta taxa de rendimentos na aposentadoria do setor público, mas é inviável. Ou seja, alguém lembra que aposentados não são uma categoria única, irmanada pela injustiça de seus baixos proventos.
Temos algo em comum: queremos que o país cresça e seja mais igualitário. Mas isso é impossível com esse nível de educação, essa infraestrutura vergonhosa, essa política industrial de protecionismo, esse modelo de negócios parasita do Estado. Assim não dá.
Timidamente, a presidente dá sinais de que percebe que não pode continuar ignorando o que se passa e repetindo o script marqueteiro. Defende o ajuste fiscal. Com a devida ênfase, evita o caminho fácil de ameaçar com militantes na rua e exalta a liberdade de expressão, viva! Corta voos de ministros em avião da FAB. Reduz o ministério de 39 para 38 ministros, embora os mais de 20 mil cargos de confiança e os 180 mil sem concurso sigam impávidos e colossais. Não chega a ser uma contenção das despesas de custeio nem da expansão dos gastos públicos, mas tem valor simbólico.
As ideias estão na mesa. Mas é urgente fazer mais e logo. Será que conseguiremos caminhar para uma agenda mínima?
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*Ana Maria Machado é escritora
Fonte: Jornal O Globo online, 18/04/2015
Imagem da Internet
Depois de levado por mentiras bem orquestradas a se acreditar numa Ilha da Fantasia com a miragem do governo assegurando perfeições, o país está tendo de encarar fatos e reconhecer alguns aspectos da realidade que lhe esconderam ou que, por um bom tempo, preferiu não ver. E isso é bom. Por mais que comentários rasteiros e truculentos ainda dominem a internet, ela traz também uma profusão de análises mais sérias, de todos os matizes do espectro politico. Os pontos que levantam arejam o debate. Convidam a darmos mais atenção às ideias que à ideologia. Ou a lembrarmos que política é a arte da negociação em busca de consensos para o bem comum, e não a procura desenfreada de negociatas visando a aumentar os próprios bens.
É animador ver que começam a ser discutidas ( e até votadas, como a terceirização) alternativas ausentes da campanha eleitoral, embora façam parte de uma pauta recôndita indispensável ao desenvolvimento do Brasil e dos brasileiros, por mais que às vezes pareça haver um sinistro pacto implícito para ignorá-las.
Na área política, é salutar que agora se discuta o voto distrital, o distrital misto, o distritão, indo muito além das repetidas tentativas de imposição autoritária do voto em lista fechada, a ser referendado num plebiscito meio bolivariano. Ligada a esse ponto, a questão do financiamento das campanhas tende a se beneficiar do horror público diante das vergonhosas descobertas do que se escondia debaixo do que alegam ser doações de empreiteiras. O clamor das ruas, ao indicar o grau de saturação e indignação atingido, lembra aos políticos quanto os eleitores estão se sentindo enganados, descrentes, desesperançados. Outra boa ideia que volta a ser discutida é o fim da imunidade parlamentar (exceto para o que um congressista diz ou como vota). Fala-se novamente em retomar o exame da cláusula de barreira e outros dispositivos que limitem o número de partidos. E até mesmo se lembra de que parlamentarismo existe e tem qualidades.
E a ação de juízes confiáveis pressiona para diminuir a impunidade. Cumprindo as promessas implícitas da Constituição de 88, o Ministério Público agora atua de maneira muito mais responsável, deixando-se de lado práticas anteriores, quando um procurador ou policial plantava boatos na imprensa e depois se abria o caso a partir disso — para no fim ter de arquivar porque não se provava nada. A cooperação externa no combate à evasão fiscal revela o papel de bancos. Em breve podemos até aderir a campanhas internacionais para exigir o fim de paraísos fiscais, bela agenda para nossa política exterior.
Na economia, além de uma legislação trabalhista mais moderna e flexível, discutem-se temas que eram dogma — como o modelo de partilha, o de concessão ou um financiamento consorciado. A descrença que se reflete nos baixos índices de poupança e investimento, também consequência da ênfase no consumo, pode ser propícia à compreensão de mecanismos mais complexos e realistas. Após surfar no alto preço das commodities e na herança bendita que permitiu redistribuição de renda e avanços sociais, cada vez mais setores entendem que é preciso aproveitar o bônus demográfico do qual estamos quase saindo. Fala-se em mais realismo na Previdência e correção de privilégios. Manifestam-se até, de público, opiniões que antes davam linchamento: como a de que a baixa poupança está ligada à perspectiva de alta taxa de rendimentos na aposentadoria do setor público, mas é inviável. Ou seja, alguém lembra que aposentados não são uma categoria única, irmanada pela injustiça de seus baixos proventos.
Temos algo em comum: queremos que o país cresça e seja mais igualitário. Mas isso é impossível com esse nível de educação, essa infraestrutura vergonhosa, essa política industrial de protecionismo, esse modelo de negócios parasita do Estado. Assim não dá.
Timidamente, a presidente dá sinais de que percebe que não pode continuar ignorando o que se passa e repetindo o script marqueteiro. Defende o ajuste fiscal. Com a devida ênfase, evita o caminho fácil de ameaçar com militantes na rua e exalta a liberdade de expressão, viva! Corta voos de ministros em avião da FAB. Reduz o ministério de 39 para 38 ministros, embora os mais de 20 mil cargos de confiança e os 180 mil sem concurso sigam impávidos e colossais. Não chega a ser uma contenção das despesas de custeio nem da expansão dos gastos públicos, mas tem valor simbólico.
As ideias estão na mesa. Mas é urgente fazer mais e logo. Será que conseguiremos caminhar para uma agenda mínima?
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*Ana Maria Machado é escritora
Fonte: Jornal O Globo online, 18/04/2015
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