Carlos Lessa*
O País atravessa um conjunto combinado de crises, que desemboca em outra maior, republicana
No ano passado, no Guarujá, litoral de São
Paulo, uma mulher morreu massacrada por seis ou sete moradores de seu
bairro. Ao sair de um supermercado local, deu uma fruta para uma menina
sentada na calçada, supondo que estivesse com fome. Abruptamente, a
mulher foi desacordada com um soco, a partir do grito de um morador: “É a
bruxa!” O jornal local havia reproduzido naqueles dias um retrato
falado de uma bruxa que em 2012, na Baixada Fluminense, teria
assassinado crianças para rituais satânicos. Quem gritou identificou a
moradora como a bruxa. Abriram-lhe a bolsa e encontraram um pequeno
livro de capa vermelha e dois retratos de meninas. Arrastaram a suposta
bruxa para o meio da rua e, diante de mais de cem indivíduos, a mataram
com o máximo de violência. A assassinada era mãe de família, o livro
vermelho era um catecismo religioso e os dois retratos de meninas eram
de suas filhas. Há uma equivalência dessa terrível manifestação com o
episódio das Bruxas de Salem, no qual a população local em pânico
chacinou em 1692 duas dúzias de mulheres da pequena comunidade nos
Estados Unidos.
A tragédia do Guarujá revelou uma
população inteiramente descrente da eficiência policial e da atuação da
Justiça. Fez, pelas próprias mãos, publicamente, um “justiçamento”
local. Essa é a pior dimensão de uma crise de governabilidade.
Creio que o Brasil atravessa um conjunto combinado de
crises, que desemboca em uma maior crise republicana. Hoje, 80% da
população brasileira é urbana, mais de 50% metropolitana. As cidades
estão sem qualquer recurso para se salvaguardar de uma interrupção de
abastecimento: qualquer metrópole em três dias entra em colapso.
Evidências dessa vulnerabilidade estão disponíveis nas últimas semanas.
Os caminhoneiros interromperam o abastecimento de combustível e, em
diversos municípios no Sul do Brasil, frangos e porcos morreram por
falta da ração, o que repercutiu em toda a rede urbana. Falhas derivadas
do “petrolão” produziram protestos localizados. Em um deles, a Ponte
Rio-Niterói ficou bloqueada por horas, causando um gigantesco
engarrafamento. Pneus queimados geram efeitos parecidos e essa prática
tem se generalizado.
Na ordem democrática, a luta pelo direito social de
um grupo deve ser assumida pela cadeia de representações sociais e
políticas e não deve sacrificar os direitos de outros grupos sociais. A
multiplicação de manifestações que dispensam as representações legais
indica uma profunda crise política.
A crise atual combina a exaustão da
política macroeconômica, que priorizou o consumo individual de
mercadorias mediante o endividamento em longo prazo das famílias, com
câmbio flexível valorizando o real, mediante a atração por juros
elevados. Esta política deixou de lado a expansão quantitativa e
qualitativa dos serviços públicos, engendrou uma situação estrutural de
degradação da mobilidade urbana, educação e saúde pública, conduziu as
forças produtivas em direção à exportação de alimentos e
matérias-primas, desestruturou cadeias produtivas industriais e fraturou
a soberania nacional com privatizações e desnacionalizações.
A ausência de eleição direta sancionou a
visão ingênua de que todos os problemas nacionais se derivavam do
autoritarismo, sendo o governo militar o culpado. Para todos os males,
prevaleceu a tese de que a democracia seria não o médico, mas o
medicamento que tudo resolveria.
Como o regime militar assumiu a tese do
nacional-desenvolvimentismo e se propôs elevar o Brasil a potência
mundial no ano 2000, o seu repúdio facilitou a crítica aos grandes
projetos de infraestrutura, abriu caminho para um ambientalismo hostil à
chaminé da fábrica, desqualificou nosso triunfo industrial e movimentou
a desconstrução do homem brasileiro, que não seria cordial e que,
apesar de mestiço, seria preconceituoso etc. etc. Houve o expurgo das
expressões “desenvolvimento”, “industrialização”, “nação”.
A singela variável explicativa que
culpava os militares do passado foi substituída pelo marajá da Era
Collor e orientada ideologicamente para culpar o Estado. Foi proposta a
destruição da Era Vargas e não foi discutido qualquer novo projeto
nacional. As diretivas de industrialização e urbanização foram
substituídas pela inserção globalizada e a adoção do chamado Consenso de
Washington.
A inflação desenfreada e os problemas
estruturais mais bem visibilizados e sem solução intensificam a crise
política como uma rejeição dos mecanismos de representação. A fruição
dos direitos civis que como o ar são percebidos quando faltam é
esquecida perante as frustrações acumuladas. Prospera o discurso de
exaustão do modelo anterior; aparece como exaltação: “exportar é a
solução” e “integração competitiva ao cenário global”. Avança a crise
institucional. À Constituição de 1988 se sucedem 73 Emendas
Constitucionais; combinadas com milhares de Medidas Provisórias,
compõem, por si, só, um enigma, que realimenta outras dimensões
críticas.
Na entrada deste milênio, a espetacular elevação dos
preços internacionais dos produtos primários e a queda dos preços
internacionais dos produtos industriais primários permitiram um intenso
desenvolvimento social pelo ângulo do consumo privado e uma perversa
evolução das forças produtivas com desindustrialização e
desnacionalização, o que acentuou a vulnerabilidade brasileira. Houve
margem de manobra para elevar o padrão de vida de milhões de famílias
brasileiras. A política de elevação de juros criou uma situação externa
financeira confortável. Em contraponto ao benefício social do Bolsa
Família, foi outorgada liquidez em moeda internacional aos ativos dos
ricos e tornou-se possível até fenômenos especulativos como aquele do
grupo das empresas X, de Eike Batista, além dos brutais ganhos do
sistema financeiro.
Neste novo milênio, houve melhora dos
padrões de consumo de itens privados e regressão nas forças produtivas. A
fragilidade estrutural se evidencia com a crise geopolítica mundial e a
perda da situação externa excepcionalmente favorável que o País
desfrutou até 2009. O Brasil “celeiro do mundo”, com fome ainda
presente. A multiplicação da frota automobilística sem aperfeiçoamento
do sistema de transporte coletivo, o atraso nos investimentos
logísticos, os equívocos e adiamentos nos projetos de energia e a
desmontagem dos estoques preventivos de alimentos são componentes de uma
ausência de planejamento nacional. Pairam no ar a destruição de
empregos de qualidade, a insolvência familiar e a falta de perspectivas
para os jovens. Em resumo, crise econômica, política e institucional
compõem os vetores de uma crise social que ameaça com recessão,
desemprego e perdas patrimoniais.
Há, hoje, um quase consenso
sobre a necessidade de um ajuste e o desejo de mudança. O ajuste não é
um fim em si mesmo, tampouco é claro se ele é ou seria por cortes de
gastos públicos ou aumento de impostos. Cortar o quê e de quem? Cortar
custeio? Investimentos públicos? Subsídios? Gastos com juros e
amortização da dívida pública? Cortar a União, estados e municípios?
Pelo outro ângulo, elevar impostos diretos ou indiretos? Sobre renda ou
patrimônio? Sobre circulação? Elevar a receita de qual entidade da
federação?
Essas discussões podem evoluir de um
espectro conservador ou reformador estrutural. Um amigo registrou nas
manifestações de 2014 um casal de namorados que levava dois cartazes:
“menos impostos” em um e “mais saúde e educação”, no outro. O desejo
generalizado de mudança implica a exaustão da Nova República.
O desejo de mudança é transbordante,
principalmente na juventude brasileira em formação, ávida pela colocação
do Brasil em pauta. Parte dela chega a sonhar com um corolário da
globalização, que é migrar para o exterior, sem perceber a crise
geopolítica e as perplexidades quanto ao extra-Brasil.
Quem propõe a pauta que permitirá
organizar nosso futuro? Quem garantirá nossa governabilidade? É
necessário ter presente que, à fragilidade urbana, sobrepõe-se a
fragilidade de nossos serviços essenciais. Quem? Na República, os Três
Poderes são responsáveis.
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*Carlos Lessa é economista, foi reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do BNDES
Foto: José Cruz/ Agência Brasil
Fonte: Carta Capital online, 11/04/2015
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