A Europa está em guerra e não sabe. Vive cercada por todos os lados e
finge não dar por isso. Nas suas fronteiras, dentro delas, morrem
milhares, e a velha senhora faz de conta
que não é nada consigo.
A Europa é uma velha senhora sem vergonha. Ou talvez não, talvez seja
apenas uma velha senhora cansada e com pouca vontade de se preocupar
com os problemas dos outros.
O problema é que os problemas dos outros são cada vez mais os seus problemas. E contra esses, a velha senhora nada pode.
A mais de 100 quilómetros da costa síria, 700 naufragaram. A maior
parte morreu. Em 2015 são já quase 1.500 as vítimas. Já esta
segunda-feira (só esta segunda-feira!) mais três embarcações perderam o
pé e 23 pessoas faleceram. A tragédia vira hecatombe. Danos colaterais
da Primavera Árabe (em pleno e glacial Inverno), vítimas da ameaça
radical islamita, simples fugitivos ao espectro da fome, os refugiados
africanos e médio-orientais invadem a Europa, não sem antes semear com o
sangue do desespero as águas frias do Mediterrâneo.
Evoca-se o livro de 1973 de Jean Raspail, “Le Camp des Saints” (“O
campo dos santos”), por muitos considerado racista: apelidado por
Huntington “incandescente”, narra a chegada ao sul da França em velhos
cargueiros apodrecidos de 800 mil imigrantes; e a França, incapaz de os
impedir de desembarcar, soçobra subitamente ao peso da invasão pacífica
dos povos do Sul (neste caso, da Índia). Considerado por muitos
apóstolos da extrema-direita uma profecia do futuro, “O campo dos
santos” surge hoje com foros de premonição.
A Europa está em guerra e não sabe. Vive cercada por todos os lados e
finge não dar por isso. Nas suas fronteiras, dentro delas, morrem
milhares, e a velha senhora faz de conta que não é nada consigo. E se
são tantos os mortos, muitos mais, legais e ilegais, assolam o
continente do mel e do leite e despertam os velhos fantasmas da
xenofobia e do nacionalismo.
E contudo não devia ser assim. No final dos anos 90, a nova política
europeia de Liberdade, Segurança e Justiça previa uma acção determinada
para ajudar a resolver os problemas nos países de origem dos imigrantes
ilegais. Reduzir-se-ia a procura da Europa por parte dos africanos (e
não só), através da erradicação das razões que a produziam. Essa
política visava também uniformizar progressivamente as leis sobre
imigração legal e asilo em toda a Europa, para tornar homogéneos os
critérios. A coordenação do sistema de quotas, selecção de candidatos em
bases semelhantes, regras comuns como no caso do reagrupamento familiar
e o aumento progressivo da qualificação dos novos imigrantes, tornariam
a política europeia cada vez mais partilhada e solidária, estabilizando
a imigração para a Europa em números de acordo com as necessidades.
Reduzia-se assim igualmente a imigração ilegal.
Nada disso aconteceu. A situação dos países de origem da maior parte
dos migrantes, em particular no norte e centro de África, agravou-se com
a Primavera Árabe, agora em pleno e frio Inverno: abrem-se os
corredores da morte através das chagas da dissolução do Estado líbio, do
advento ameaçador dos jihadistas da Al-Qaeda, Boko Haram, Estado
Islâmico, da fome na Somália, Etiópia e em tantos outros países. De todo
o lado, milhares procuram escapar às perseguições religiosas
perpetradas pelos fanáticos do Islão, que degolam, queimam e torturam,
das cidades em ruínas da Síria às praias ensanguentadas da Líbia.
Em Janeiro de 2013 viviam na União Europeia 33,5 milhões de pessoas nascidas fora dela,
cerca de 6,7% do total dos europeus. Nada de avassalador, os
imigrantes nos Estados Unidos são quase 13% da população total. Não é um
problema, é uma riqueza, problema é a imigração ilegal. E se mesmo aí
não há comparação entre Europa e EUA – que têm cerca de 11 milhões de
ilegais -, o fenómeno cresce em rapidez e dramatismo, com Lampedusa como
símbolo planetário. Na primeira metade de 2013 foram detidos às portas
do continente quase 100 mil ilegais; em 2014, 118 mil tentarem atingir
as costas italianas, 3 mil morreram; e os números não param de crescer
nos primeiros quatro meses de 2015.
A Europa parece-se cada vez mais com a cidadela fortificada da
Constantinopla do século XV, a resistir à invasão muçulmana pela última
vez, com o inimigo já dentro das muralhas e a discutir sabia e
longamente o sexo dos anjos – tema caro ao estertor da civilização
cristã. Do sul e de leste chegam os arautos do fim e os europeus, no
conforto das televisões que mostram o terror como um mal asséptico
confinado ao brilho das pantalhas, vivem exclusivamente para o pó
acumulado nos seus próprios umbigos e cogitam sobre a melhor forma de
preservar o conforto com que viveram os últimos 30 anos, acabando com
uma austeridade que os revolta mas que aos olhos dos perseguidos do Sul
se assemelha a um paraíso na Terra.
Entendamo-nos: como escreveu Rui Ramos neste jornal há poucos dias, é
indispensável resistir à demagogia e não encarar a questão da imigração
com os óculos de um maniqueísmo redutor e suicida. Nem o nacionalismo
que cresce no coração de muitos europeus é solução – precisamos dos
imigrantes e, em todo o caso, eles já cá estão -, nem o acesso ilimitado
ao velho continente tem qualquer lógica, política, económica, sobretudo
social. Mas o exemplo dos barcos da morte, a imigração clandestina, o
drama a que resumidamente associamos o nome de Lampedusa, é bem o
símbolo do que está errado e da forma como a velha senhora europeia
encara a escolha, não entre um mal e um bem, mas entre agir bem e
continuar a agir mal, sobretudo por não agir ou fazê-lo incompletamente.
A imigração ilegal, é bom dizê-lo, não começou com a Primavera Árabe.
Há mais de 20 anos que Espanha, França, Itália, Grécia tentam cada um
por si limitar os fluxos de ilegais nas suas fronteiras. As rejeições
aumentam anualmente, a esmagadora maioria nas fronteiras terrestres – em
Ceuta e Melila, cada vez mais na Polónia e na Grécia. E há Lampedusa.
Itália, a quem tem cabido a maior e mais pesada parte do fardo que
consiste a um tempo em controlar as fronteiras (suas e da Europa) e
simultaneamente salvar vidas, faz o que pode: em 2004 pôs de pé a
operação CONSTANT VIGILANCE; após Outubro de 2013 e do naufrágio de 400
clandestinos, lançou a ambiciosa MARE NOSTRUM.
Num ano, 32 unidades navais, mais de 400 operações, 350 traficantes
presos, quase cem mil salvos: a Itália, repito, faz o seu melhor. E
pediu ajuda à União Europeia que, aparentemente, ouviu o pedido, tendo a
partir de 1 de Novembro de 2014 lançado a operação TRITON para
substituir o MARE NOSTRUM, coordenada no âmbito do programa europeu
FRONTEX e com a participação de oito países europeus, entre os quais
Portugal. Solidariedade europeia? Infelizmente, a operação tem menos de
um terço do orçamento do antecessor e poucas unidades navais (cinco a
sete navios, conforme as fontes que consultei, dois aviões, um
helicóptero). E a sua missão, já foi esclarecido, não vai além das
costas italianas, restando saber quem salvará os imigrantes em alto mar.
A morte de 700 pessoas este fim-de-semana desencadeou o habitual
choro de carpideiras oficiais, a reclamar medidas, soluções de urgência,
massivas e para ontem. Nada que não tenha sucedido em boa parte das
tragédias anteriores. A Europa volta a falar em reagir, pedem-se
Conselhos Europeus extraordinários para enfrentar o que muitos chamam já
de holocausto. E está em curso por parte da Comissão Europeia a
preparação de uma agenda com propostas concretas, a apresentar em Maio.
Parte delas visa colocar fora do território europeu a resposta às
pressões migratórias; inclui apoio financeiro aos países de origem para
reprimirem as tentativas de travessia, instalação de controlos e
operações para limitar a saída dos países de origem e ainda o
estabelecimento de centros de triagem em território africano. Há já
debate entre quem releva a possível existência de problemas de direitos
humanos e quem vê nestas ideias boas propostas para reduzir o número de
mortes no mar.
Algo terá de ser feito. Já. A velha senhora não pode a um tempo
invocar uma superioridade moral (e de valores) que tão decantadamente
gosta de celebrar e ignorar um holocausto nas suas fronteiras. E a
resposta não pode ser só – mas tem de ser também – dada longe delas,
atacando como deve o problema na fonte. A resposta para parar o drama do
mar da morte, como com tanta (amarga) felicidade lhe chamou Rui Ramos, é
mais Europa.
Mais solidariedade europeia: tendo consciência de que nenhuma
instituição ou organização pode fazer tudo ou resolver todos os
problemas, os Estados nacionais, que exigem a intervenção da mesma
Europa a quem (muitos deles) recusam depois competências e meios, terão
de contribuir para os recursos (logísticos e financeiros) necessários,
coordenados no âmbito europeu da União e dos seus programas.
Mais meios de vigilância e salvamento, em conjunto, apoiando o
esforço de Estados-membros como a Itália ou Espanha, apressando a
harmonização e coordenação das políticas de imigração no âmbito do
Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Mais acções inteligentes e
humanitárias nos países de origem. Mais e mais, com pressa, muito
cuidadosamente.
Como hoje disse, e bem, Frederica Mogherini, citada pela Bloomberg e
pelo Observador: é preciso construir “um sentido de responsabilidade
europeia sobre o que está a acontecer no Mediterrâneo”, disse a Alta
Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros.
A velha senhora ainda pode surpreender o Mundo, mas tem de se
levantar da cadeira de embalar do conformismo em que está sentada há
tempo de mais. Só assim evitará a Europa a vergonha de continuar a ser o
palco de uma das maiores misérias dos tempos modernos.
------------------------
* PROFESSOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICAFonte: Site de Portugal O Observador, 20/04/2015
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário