terça-feira, 7 de abril de 2015

Falando de Marionetes

 João Pereira Coutinho*
 "A ausência de conhecimento pode tornar-nos livres 
no sentido "bestial" do termo. Mas, ao mesmo tempo, 
torna-nos prisioneiros da mais 
básica instintividade."

Leio com prazer o último livro de John Gray, "The Soul of the Marionette" (Allen Lane, 179 págs.). É um ensaio sobre a liberdade humana —ou, dito de outra forma, uma explicação erudita sobre a limitada liberdade que temos quando comparados com as bestas. 

Tese de Gray: uma besta cumpre os seus instintos. Não agoniza entre opções e não tem o fardo insuportável do pensamento reflexivo. 

Nós, humanos, somos menos livres que as bestas. Julgamos que a nossa "autonomia" (para usar uma palavra erudita) é a forma suprema de sermos livres. Estamos dramaticamente equivocados: não passamos de almas torturadas entre a experiência do passado e as expectativas do futuro. O fato de estarmos condenados a escolher não deixa de ser uma condenação. 

Concordar ou discordar de Gray é assunto secundário. Embora, aqui entre nós, a minha admiração pelo texto seja proporcional à discórdia perante ele. Sou um típico produto da modernidade (a exata modernidade que Gray rejeita enfaticamente). Só consigo pensar a liberdade com um mínimo de conhecimento. 

A ausência de conhecimento pode tornar-nos livres no sentido "bestial" do termo. Mas, ao mesmo tempo, torna-nos prisioneiros da mais básica instintividade. Pena Gray não refletir sobre a servidão que existe nessa instintividade. 

Mas repito: concordar ou discordar é assunto secundário. Até porque o primeiro pensamento que tive quando terminei o livro não lidava com o argumento propriamente dito. Lidava com Gray "lui-même": "Esse homem já não está na universidade". 

Fui confirmar. Confirmei. Gray ensinou em Oxford, Harvard e Yale. Ainda passou uns anos na London School of Economics. Hoje, dedica-se exclusivamente à escrita. 

Não é caso único. Quase por coincidência, leio na revista "The Spectator" uma entrevista com Roger Scruton. Não vale a pena apresentar Scruton ao auditório letrado: uma vez mais, concordar ou discordar do autor é assunto secundário. 

O que ninguém pode contestar é a inteligência e a consistência de sua obra –uma inteligência e consistência que o afastaram da academia há, pelo menos, três décadas. 

O próprio Scruton, na entrevista, reflete sobre isso. Para dizer, com serena naturalidade, que ser um filósofo por conta própria é a única forma de poder escrever a verdade. 

Seria bom olhar para os casos de Gray ou Scruton como exceções da regra. Infelizmente, não são. E um conhecimento do debate universitário inglês ensina uma triste lição: muitos dos pensadores, presentes ou passados, que construíram obra legível e admirável, já não teriam espaço no sistema de agora. 

Razões diversas. Para começar, o sentimento de inferioridade das "ciências humanas" em relação às "ciências naturais" (uma inferioridade que, segundo Isaiah Berlin, radica no século 18) obrigou as "humanidades" a uma produção insana, e por isso estéril, de ensaios que ninguém lê. 

Desde logo porque os ensaios não são para serem lidos; são para serem publicados em revistas da especialidade que, em troca, concedem ao autor algumas medalhas para progressão na carreira. 

Um ensaio filosófico de qualidade, como o de John Gray, demora anos a ser pensado e escrito. Um filósofo "acadêmico" que demore anos a escrever algo de relevante é devorado em pouco tempo por uma manada de nulidades que reciclam e publicam o mesmo pedaço de lixo vezes sem conta só para pontuarem no autódromo da academia. 

Mas existe uma segunda razão: Gray ou Scruton, para ficarmos em autores contemporâneos, não escrevem o que as inquisições acadêmicas exigem. Pelo contrário: enfrentam algumas vacas sagradas – o apelo do multiculturalismo, a soberba do racionalismo humano, a superioridade moral do pensamento revolucionário e utópico– que acabaram por ocupar toda a paisagem das "humanidades".
Moral da história? 

O debate está mais pobre, sim, mas convém não generalizar: ele está mais pobre no interior da universidade inglesa, que foi excluindo da arena as vozes dissonantes ou mesmo excêntricas que deveriam ser a alma de qualquer ensino verdadeiro. 

Mas essas vozes existem e persistem "cá fora". O que permite concluir que a universidade será cada vez mais um laboratório de propaganda e uma repartição burocrática: depois da lavagem cerebral, haverá um carimbo no diploma que prepara o infeliz para rigorosamente nada. 
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* Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras na versão impressa, e a cada duas semanas no site.
Fonte: Folha online, 07/04/2015
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