João Pereira Coutinho*
"A ausência de conhecimento pode tornar-nos livres
no sentido "bestial"
do termo. Mas, ao mesmo tempo,
torna-nos prisioneiros da mais
básica
instintividade."
Leio com prazer o último livro de John Gray, "The Soul of the
Marionette" (Allen Lane, 179 págs.). É um ensaio sobre a liberdade
humana —ou, dito de outra forma, uma explicação erudita sobre a limitada
liberdade que temos quando comparados com as bestas.
Tese de Gray: uma besta cumpre os seus instintos. Não agoniza entre
opções e não tem o fardo insuportável do pensamento reflexivo.
Nós, humanos, somos menos livres que as bestas. Julgamos que a nossa
"autonomia" (para usar uma palavra erudita) é a forma suprema de sermos
livres. Estamos dramaticamente equivocados: não passamos de almas
torturadas entre a experiência do passado e as expectativas do futuro. O
fato de estarmos condenados a escolher não deixa de ser uma condenação.
Concordar ou discordar de Gray é assunto secundário. Embora, aqui entre
nós, a minha admiração pelo texto seja proporcional à discórdia perante
ele. Sou um típico produto da modernidade (a exata modernidade que Gray
rejeita enfaticamente). Só consigo pensar a liberdade com um mínimo de
conhecimento.
A ausência de conhecimento pode tornar-nos livres no sentido "bestial"
do termo. Mas, ao mesmo tempo, torna-nos prisioneiros da mais básica
instintividade. Pena Gray não refletir sobre a servidão que existe nessa
instintividade.
Mas repito: concordar ou discordar é assunto secundário. Até porque o
primeiro pensamento que tive quando terminei o livro não lidava com o
argumento propriamente dito. Lidava com Gray "lui-même": "Esse homem já
não está na universidade".
Fui confirmar. Confirmei. Gray ensinou em Oxford, Harvard e Yale. Ainda
passou uns anos na London School of Economics. Hoje, dedica-se
exclusivamente à escrita.
Não é caso único. Quase por coincidência, leio na revista "The
Spectator" uma entrevista com Roger Scruton. Não vale a pena apresentar
Scruton ao auditório letrado: uma vez mais, concordar ou discordar do
autor é assunto secundário.
O que ninguém pode contestar é a inteligência e a consistência de sua
obra –uma inteligência e consistência que o afastaram da academia há,
pelo menos, três décadas.
O próprio Scruton, na entrevista, reflete sobre isso. Para dizer, com
serena naturalidade, que ser um filósofo por conta própria é a única
forma de poder escrever a verdade.
Seria bom olhar para os casos de Gray ou Scruton como exceções da regra.
Infelizmente, não são. E um conhecimento do debate universitário inglês
ensina uma triste lição: muitos dos pensadores, presentes ou passados,
que construíram obra legível e admirável, já não teriam espaço no
sistema de agora.
Razões diversas. Para começar, o sentimento de inferioridade das
"ciências humanas" em relação às "ciências naturais" (uma inferioridade
que, segundo Isaiah Berlin, radica no século 18) obrigou as
"humanidades" a uma produção insana, e por isso estéril, de ensaios que
ninguém lê.
Desde logo porque os ensaios não são para serem lidos; são para serem
publicados em revistas da especialidade que, em troca, concedem ao autor
algumas medalhas para progressão na carreira.
Um ensaio filosófico de qualidade, como o de John Gray, demora anos a
ser pensado e escrito. Um filósofo "acadêmico" que demore anos a
escrever algo de relevante é devorado em pouco tempo por uma manada de
nulidades que reciclam e publicam o mesmo pedaço de lixo vezes sem conta
só para pontuarem no autódromo da academia.
Mas existe uma segunda razão: Gray ou Scruton, para ficarmos em autores
contemporâneos, não escrevem o que as inquisições acadêmicas exigem.
Pelo contrário: enfrentam algumas vacas sagradas – o apelo do
multiculturalismo, a soberba do racionalismo humano, a superioridade
moral do pensamento revolucionário e utópico– que acabaram por ocupar
toda a paisagem das "humanidades".
Moral da história?
O debate está mais pobre, sim, mas convém não generalizar: ele está mais
pobre no interior da universidade inglesa, que foi excluindo da arena
as vozes dissonantes ou mesmo excêntricas que deveriam ser a alma de
qualquer ensino verdadeiro.
Mas essas vozes existem e persistem "cá fora". O que permite concluir
que a universidade será cada vez mais um laboratório de propaganda e uma
repartição burocrática: depois da lavagem cerebral, haverá um carimbo
no diploma que prepara o infeliz para rigorosamente nada.
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* Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do
'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras
na versão impressa, e a cada duas semanas no site.
Fonte: Folha online, 07/04/2015
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