Para Martin Chalfie, cientista ganhador do Nobel de Química, o processo de peer review é importante para a qualidade da produção científica, mas há pontos que precisam ser melhorados para que os bons trabalhos não escapem
Estudo publicado na quinta-feira (23) na revista americana Science comprovou que o processo de peer review,
em que um trabalho científico é avaliado por outros pesquisadores, é
eficiente para detectar quais projetos são promissores e, portanto,
merecem financiamento público.
Mesmo assim, o peer review continua a ser criticado por renomados cientistas. Não a teoria do processo, mas como ele tem funcionado na prática.
Em entrevista exclusiva ao site de VEJA, o biólogo americano Martin
Chalfie, da Universidade de Columbia, falou sobre as falhas do método de
revisão dos artigos, a burocracia para divulgar pesquisas em jornais
científicos prestigiados e de como o corte de verba de centros de
pesquisa americanos está prejudicando a produção acadêmica do país.
Martin Chalfie tem cacife para adotar essa postura crítica frente aos
colegas: é ganhador - junto a outros dois cientistas -- do Prêmio Nobel
de Química de 2008 pela descoberta da Proteína Verde Fluorescente
(GFP), elemento não invasivo e não tóxico usado para estudar a atividade
dos genes em organismos vivos (como o humano).
A melhor forma de se avaliar artigos científicos é pelo peer review?
Essa qualificação é excepcionalmente importante para publicações
científicas. No entanto, existem alguns problemas com a forma como essa
revisão é feita hoje. Alguns revisores, por exemplo, não avaliam o
artigo proposto, mas sim o que eles desejam que o artigo fosse. Talvez
isso aconteça porque o revisor se empolgou com o trabalho e vislumbrou
outras possibilidades, mas a função dele é avaliar aquele artigo
específico, não a ambição do autor. Outro problema é que, muitas vezes, o
estudo recebe comentários muito diferentes dos avaliadores. Mesmo que
haja várias resenhas positivas, se houver uma negativa o editor pode
decidir não publicar o documento. Isso pode eliminar grandes pesquisas
da seleção apenas porque um dos revisores implicou com algo no texto, ou
mesmo com um dos autores.
Quais seriam as alternativas para contornar esses problemas? Um peer review justo, de forma que os revisores sejam anônimos para o autor, porém conhecidos entre si. Um exemplo é o projeto do jornal eLife,
que exige que os revisores cheguem a um consenso de quais são os pontos
que devem ser alterados antes de encaminhar a resenha para o autor.
Funciona como uma autocensura: se alguém for implicante gratuitamente,
os colegas perceberão e não considerarão as suas observações. Se um
revisor quiser pedir experimentos extras desnecessários, os outros podem
lhe mostrar que a pesquisa não é sobre aquilo. Eu acho que é uma boa
abordagem. O único problema que não se resolve com esse sistema é o dos
editores. Há reclamações constantes que editores dos jornais científicos
grandes são pessoas ótimas, simpáticas, mas que não têm uma longa
experiência de trabalho na área científica. Isso não quer dizer que eles
não sejam qualificados, mas sim que podem não ter a influência
necessária para criticar a revisão de um cientista renomado. Talvez uma
alternativa seja ter cientistas líderes no segmento como editores. É o
que fez o jornal Genetics, cujo editor Mark Johnston não fala sobre peer review, mas sim sobre peer editors
-- as melhores pessoas naquele assunto são as que editam os trabalhos e
tomam as decisões. De qualquer forma, eu ainda acho essa revisão muito
importante e necessária, pois quase sempre incentiva autores a trabalhar
mais para melhorar seus estudos.
O senhor já disse publicamente que teve dificuldades para publicar na revista Science o artigo que lhe rendeu o Nobel. A burocracia para divulgar esses documentos dificulta o andamento das pesquisas?
Eu tive alguns problemas, mesmo. Um exemplo é que eles não queriam
mandar a minha pesquisa para revisão porque ela tinha a palavra "nova"
no título e, segundo eles, "tudo na revista era novo". Depois que o
artigo tinha sido aceito, mandei uma foto para eles da GFP brilhando em
uma célula, e me perguntaram se podiam mudar a cor porque o verde não
ficava bem na impressão, mas eu neguei porque a cor fazia parte da
pesquisa. O terceiro obstáculo foi conseguir autorização por escrito de
todos os outros cientistas que fizeram testes com a GFP e cujos
trabalhos eu queria citar no meu artigo. São dificuldades burocráticas
excessivas. Mas, na verdade, há problemas maiores que a burocracia
envolvendo as publicações científicas.
Quais seriam esses problemas? Alguns jornais
científicos são considerados tão importantes que publicar neles é visto
como um selo de qualidade de um experimento. Já ouvi pessoas dizendo
"ele é ótimo, tem três artigos publicados na Nature, Cell ou Science
nos últimos cinco anos", como se o fato de estar na revista fosse o
importante, e não o trabalho da pessoa. Eu quero que julguem a qualidade
de um pesquisador pelo que ele fez, por suas conquistas, e que saibam
porque elas foram importantes. Há uma medida que foi criada para ajudar
bibliotecários chamada 'Fator de Impacto', calculada pela quantidade de
citações feitas a um artigo. No ano passado eu pesquisei aonde os
trabalhos dos prêmios Nobel de Medicina e Fisiologia dos últimos 25 anos
foram impressos. O resultado foi que metade deles apareceu nessas
revistas famosas, e a outra metade estava espalhada por várias outras
publicações. Aquele artigo que muda o jeito que as pessoas fazem ciência
nem sempre é divulgado nesses jornais, e são reconhecidos como
importantes mesmo assim. O valor está nas pesquisas, e não nas
publicações científicas. Muitos estudiosos ao redor do mundo estão se
rebelando contra esse status quo estabelecido pelos jornais de
ciência. Existe, por exemplo, um documento, a Declaração sobre Avaliação
de Pesquisa, criado por membros da Sociedade Americana de Biologia
Celular, que alega que a forma como esses jornais estão fazendo o
trabalho não está correto.
A seleção do peer review se tornou ainda mais relevante nos últimos anos, quando caiu a verba destinada aos centros públicos americanos de pesquisa. Como esses cortes estão afetando a produção científica do país?
O suporte através do Instituto Nacional da Saúde sempre ajudou muito a
ciência americana. Nos últimos dez anos, porém, esse apoio financeiro
tem sido achatado em relação à inflação. O financiamento público que
antes ajudava até 30% das pesquisas inscritas, agora auxilia cerca de
10%. As pessoas que julgam as propostas de estudo têm um trabalho
difícil, o de selecionar quem merece, e que não merece, o dinheiro
público. Mais de 25% dos estudos são absolutamente incríveis e deveriam
ser financiados, mas não há verba. Isso é um tanto irônico e triste.
Vivemos em um tempo glorioso para cientistas, em que as técnicas,
habilidades e o conhecimento estão crescendo enormemente. Mas as
consequências dessa redução de verba são perturbadoras. Uma delas é a
perda de talentos. Um dos meus melhores alunos tem medo de optar por uma
carreira acadêmica porque não sabe se vai conseguir financiamento. Uma
outra ex-estudante minha decidiu que precisava de um trabalho seguro e
estável e optou por cursar Farmácia. Esses são indivíduos com talento e
entusiasmo enormes, que poderiam criar novas oportunidades nos
laboratórios. Só que estão seguindo outro caminho. Também vejo alunos e
pesquisadores procurando empregos na Europa, onde há melhores
oportunidades de financiamento. Estamos começando a ter uma fuga de
cérebros aqui nos Estados Unidos, com os talentos indo para outros
países. Justo aqui, o lugar para onde os cérebros estrangeiros
costumavam vir.
Alguns analistas defendem que a falta de investimento público
está privatizando a ciência americana. Segundo eles, as pesquisas não
são mais guiadas por prioridades nacionais, mas sim escolhidas por
magnatas filantrópicos, como David H. Koch e James Simons. Você vê esse
movimento como algo prejudicial à ciência? Suporte privado é
maravilhoso, mas não é algo que vai conduzir a inovação nos Estados
Unidos. Pode abrir e apoiar novas áreas, mas só o orçamento de pesquisa
do Instituto Nacional de Saúde (NIH) recebe todo ano 30 bilhões de
dólares. Não há bilionários suficientes para doar essa quantia
anualmente. Esses filantropos são bem-vindos, mas não substituem o
financiamento público, que tem sido importante para garantir um centro
de pesquisa vibrante e excitante no país. Há também quem doe dinheiro
para grandes prêmios, e é bom que os cientistas sejam reconhecidos, mas
isso não ajuda novas pesquisas de forma relevante.
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