O século XIX de Eça de Queirós, Machado de Assis e do romance de
adultério. O professor da Universidade de Coimbra Carlos Reis abriu os
encontros Minha Língua, Minha Pátria na Livraria Cultura, em São Paulo.
Tem uma certa graça estar a ouvir falar do romance do século XIX, do
tema das mulheres e do adultério e da ligação disto tudo com a obra de
Eça de Queirós numa sexta-feira ao final da tarde, na Livraria Cultura
do Shopping Iguatemi, em São Paulo. Este é um dos centros comerciais
mais chiques da cidade brasileira, com lojas que vão da Burberry à
Chanel e à Prada, restaurantes gourmet e recantos onde se ouve
tocar piano ao vivo. Durante o dia inteiro, os corredores do shopping e
da livraria são animados por um corrupio de personagens femininas, de
todas as idades, vestidas com as mais exclusivas marcas da cabeça aos
pés. Mulheres do século XXI que dão a impressão de, tal e qual as suas
congéneres do século XIX, terem muitas horas de ócio potenciador da
prática de adultério.
Foi aí, naquela que é uma das mais bonitas
livrarias de São Paulo, num auditório aberto rodeado de prateleiras e
mesas com livros que Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra e
especialista em literatura do século XIX e XX, abriu os encontros Minha
Língua, Minha Pátria, que vão juntar até ao dia 15 escritores
portugueses e brasileiros. O programa é organizado pelo PÚBLICO com a
Livraria Cultura, tendo como parceiros o Camões – Instituto da
Cooperação e da Língua e a Universidade de Coimbra.
Foi já quase no final da sessão Eça de Queirós ou a língua como pátria ausente,
moderada pela directora adjunta do PÚBLICO Simone Duarte, que veio a
pergunta que levou o académico ao tema do adultério. Carlos Reis já
tinha lembrado que Eça, na sua correspondência com Ramalho Ortigão,
também da Geração de 70, lhe pedia que o criticasse, que lhe dissesse se
ia pelo bom caminho e lhe assegurasse que não estava apenas a imitar
Balzac. Na plateia, um rapaz quis saber se três importantes romances da
literatura mundial – Madame Bovary, de Flaubert; O Primo Basílio, de Eça de Queirós; e Dom Casmurro,
de Machado de Assis – não seriam a mesma história contada de forma
diferente. Em resposta, Reis informou que iria juntar àqueles três
outros tantos títulos. Lembrou então os romances Effie Briest, do alemão Theodor Fontane; Anna Karenina, do russo Tolstói, e La Regenta,
do espanhol Clarín. “Ou seja, estes são os títulos daquele que foi um
grande subgénero do romance do século XIX, o romance de adultério. E
vários escritores, incluindo Clarín, foram acusados de plagiar Flaubert.
O que acontece é que o tema do adultério – entenda-se feminino – era o
tema que estava na ordem do dia naquela época. Esses três romances que
mencionou, no fundo, vão-se continuando uns aos outros. De certa forma,
estes grandes escritores estavam todos a escrever o mesmo romance.”
Carlos
Reis, que começou a estudar Eça de Queirós quando tinha 20 anos e é o
coordenador das edições críticas desde 1992, lembrou ainda que o autor
de Os Maias fazia um retrato de costumes que não era embelezado
e que o tema do adultério se inseria aí. Era um grande escritor de
romances, de ficções, e foi, sobretudo, um grande criador de
personagens. “É um escritor que inovou na sua língua e não só por
inventar palavras – isso todos os escritores o fazem, faz parte da sua
obrigação profissional renovar a língua e revolucioná-la. Mas muito
poucos conhecem o privilégio de ter deixado uma palavra à língua
portuguesa que está hoje dicionarizada e que identifica uma personagem
de Eça de Queirós: acaciano [o conselheiro Acácio, personagem do romance
O Primo Basílio]”, explicou o professor. “Diz-se de alguém que é acaciano, como se diz que é hamletiano (de Hamlet) ou quixotesco (Dom Quixote de La Mancha) ou bovarista (Madame Bovary).
Só os grandes génios são capazes de criar personagens que ficam para
além do desaparecimento das suas obras e que entram na língua sem que o
próprio escritor se aperceba disso no seu tempo”, acrescentou.
Os caixeiros do Rio
Claro que estando Carlos Reis a falar para uma plateia maioritariamente de brasileiros – onde se destacava outra especialista na obra deste autor português do século XIX, a professora Elza Miné, e também a dramaturga Maria Adelaide Amaral, que fez a adaptação de Os Maias para a minissérie de televisão que a Rede Globo exibiu em 2001 – não podia deixar de referir que Eça de Queirós, que nunca esteve no Brasil, deveria ter começado a sua carreira de consulado precisamente por este país, estava destacado para a Bahia. Mas isso não aconteceu.
Claro que estando Carlos Reis a falar para uma plateia maioritariamente de brasileiros – onde se destacava outra especialista na obra deste autor português do século XIX, a professora Elza Miné, e também a dramaturga Maria Adelaide Amaral, que fez a adaptação de Os Maias para a minissérie de televisão que a Rede Globo exibiu em 2001 – não podia deixar de referir que Eça de Queirós, que nunca esteve no Brasil, deveria ter começado a sua carreira de consulado precisamente por este país, estava destacado para a Bahia. Mas isso não aconteceu.
“Eça gostava do Brasil mas non troppo. Não tenhamos muitas ilusões quanto a isso. Eça escrevia para o Brasil porque precisava de arredondar o salário.”
Lembrou que a académica Elza Miné, na plateia, publicou um
livro sobre a actividade jornalística de Eça no Brasil, onde citava uma
carta que escreveu a Jaime Batalha Reis, outra das figuras da Geração de
70, a propor que escrevessem uns textos para um suplemento brasileiro e
que lhe dizia: "'No fundo, aquilo são noções fundamentais de ciência
para os caixeiros do Rio.' Como se dissesse são intrujices literárias
facílimas de fazer. Não era uma imagem muito nobre do que era o leitor
no Brasil”, concluiu o professor.
Mas Eça acabou por escrever muito para a Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e para O Estado de São Paulo, ou melhor, a Província de São Paulo, como então se chamava. Carlos Reis explicou que logo depois de ser publicado em livro, em Portugal, Os Maias foi publicado em folhetins, como nesse tempo se fazia, na Província de São Paulo
( a publicação, quase diária, durou de 12 de Agosto de 1888 a 6 de
Janeiro de 1889). Este facto que durante muitos anos escapou aos
investigadores foi descoberto por João Alves das Neves, um jornalista
português que viveu no Brasil e morreu em 2012. “Por que razão Eça fez
isto?”, questionou o professor, tal como o fez com outras obras,
nomeadamente com A Relíquia e uma parte d’ A Correspondência de Fradique Mendes, que foram publicadas na Gazeta de Notícias em
1887 e em 1888? “Porque Eça de Queirós era tão lido no Brasil que
haveria a tentação de se fazerem edições clandestinas.” Era a forma de
evitar edições piratas, já que o escritor tinha leitores no Brasil desde
os seus primeiros livros.
O discípulo de Machado de Assis
Como se vê até pela “já muito estudada” polémica que o autor português teve com o seu contemporâneo brasileiro, Machado de Assis. Em Março de 1878 aparecia no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, uma longa crítica extremamente severa a O Primo Basílio e à segunda versão de O Crime do Padre Amaro assinada por um pseudónimo de Machado de Assis, Eleazar.
Como se vê até pela “já muito estudada” polémica que o autor português teve com o seu contemporâneo brasileiro, Machado de Assis. Em Março de 1878 aparecia no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, uma longa crítica extremamente severa a O Primo Basílio e à segunda versão de O Crime do Padre Amaro assinada por um pseudónimo de Machado de Assis, Eleazar.
“Depois
desta crítica, Eça passou a escrever de forma diferente”, diz. “Por
isso pode dizer-se que Eça foi discípulo de Machado.”
Na segunda versão de O Crime do Padre Amaro,
o padre matava o filho “num acto de grande crueldade e numa descrição
sombria e sinistra. O que foi muito criticado em Portugal, nomeadamente
por Camilo Castelo Branco, que disse que era um erro porque ‘em Portugal
os padres não matam os filhos, criam-os como sobrinhos’” [gargalhadas
na livraria].
Era de facto um episódio cruel e Machado de Assis
criticava essa crueldade. "Eça de Queirós suprimiu esse episódio na
terceira versão e alterou vários episódios que Machado criticava
especificamente. Percebeu a lição”, afirma Carlos Reis. O prefácio que
deveria ter acompanhado a terceira edição do livro era também uma
reacção a Machado de Assis, embora sem nunca dizer o seu nome. Tinha um
tom desabrido e sarcástico e era uma resposta ressentida. E o escritor
nunca chegou a publicar esse texto contra o brasileiro. “O silêncio de
Eça não foi inocente. Para mim, significa: este grande escritor tem
razão.”
Não houve grandes relações epistolares entre os dois. “Eça
escreveu uma carta a Machado a que este, que se saiba, nunca
respondeu”, lembra Carlos Reis, que terminou a sessão com a leitura de
uma carta que Machado de Assis escreveu pouco depois da morte do
escritor português em Agosto de 1900. “Meu caro Henrique Chaves, que
hei-de dizer que valha esta calamidade? Para os romancistas, é como se
perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido.”
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Reportagem de Isabel Coutinho
Foto Hemerson Celtic
Fonte: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/eca-gostava-do-brasil-mas-non-troppo-1692105
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